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Exposição de grupo dissolvido pela Rússia resgata memória feminina dos gulags soviéticos

Mostra da Memorial International revela legado de mulheres enviadas por Stálin a campos de prisioneiros

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Anastassia Boutsko
DW

Mostra da Memorial International, grupo que é símbolo da democratização pós-União Soviética e foi dissolvido nesta semana pela Justiça russa, revela o legado de mulheres enviadas pelo regime do líder soviétivo Josef Stálin a campos de prisioneiros.

"Eu peço permissão para enviar um telegrama. No momento da minha prisão, duas crianças, de dois e quatro anos, estavam no meu apartamento!" Este pedido foi escrito em uma bela e curva caligrafia. Já a resposta do diretor penitenciário foi curta e direta: "Negado!"

Este telegrama é apenas um dos mais de mil documentos coletados pela fundação russa e organização de direitos humanos Memorial International. Trata-se, provavelmente, da última mostra da entidade conhecida por denunciar perseguições desde a época de Stálin. A Suprema Corte russa ordenou nesta terça-feira (28) a dissolução da entidade, sob a acusação de violar leis sobre fontes de financiamento do exterior.

Carta de uma menina para sua mãe, escrita em 1951 em campo prisioneiros, faz parte da mostra 'Material, a Memória Feminina do Gulag', da Memorial International
Carta escrita em 1951 em campo de prisioneiros integra a mostra 'Material, a Memória Feminina do Gulag', da Memorial International - Anatassia Boutsko/DW

Cerca de 200 objetos —incluindo roupas remendadas, objetos de uso diário como uma lixa de unhas feita de um pedaço de cerâmica e uma agulha feita de uma espinha de peixe, cartas e desenhos, alguns dos quais nunca enviados— foram coletados pela fundação para a exposição "Material, a Memória Feminina do Gulag", no porão da sede da entidade em Moscou.

Há 33 anos, a mais antiga organização russa de direitos humanos, cujo cofundador foi o Nobel da Paz Andrei Sakharov, vem fazendo campanha pela memória das vítimas da época de Stálin e tentando enfrentar esse período de opressão.

Mais de 12 milhões de pessoas foram perseguidas como "inimigas do povo" do final dos anos 1920 até a morte de Stálin, em 1953. Muitas vezes, uma nacionalidade "errada", um nome de sonoridade ocidental ou um nível superior de educação eram suficientes para que fossem presos ou executados ou para desaparecerem por muitos anos, até mesmo décadas, em um dos chamados gulags, campos de prisioneiros do regime soviético.

Muitas das vítimas eram mulheres. "Apenas algumas realmente haviam sido opositoras ao poder soviético", diz Irina Sherbakova, historiadora e curadora da exposição. "Na maioria das vezes, eram mulheres comuns —professoras, funcionárias públicas, donas de casa. Muitas vezes a única culpa das mulheres era ser a esposa, filha ou irmã de um 'inimigo do povo'."

Irina Sherbakova, curadora da mostra 'Material, a Memória Feminina do Gulag', da Memorial International
A historiadora Irina Sherbakova, curadora da mostra da Memorial International - Kostyanov/DW

"Por exemplo, durante o Grande Terror de 1937-1938 [Grande Terror foi o nome dado a uma sistemática campanha de prisões e execuções na antiga União Soviética contra supostos opositores de Stálin], mais de 20 mil 'esposas de inimigos' foram presas somente em Moscou e condenadas a oito anos ou mais de prisão em campos. Mais de 30 mil crianças foram enviadas para lares de menores e em muitos casos nunca mais viram seus pais", conta Sherbakova.

O destino das crianças dos gulags, segundo a curadora, é um capítulo por si só. "A taxa de mortalidade infantil nos lares era enorme, e os traumas psicológicos, incuráveis."

A exposição foi chamada de "A Memória Feminina do Gulag" porque foram principalmente as mulheres "que guardaram cuidadosamente as lembranças da opressão", diz.

Objetos da Mostra 'Material, a Memória Feminina do Gulag', da Memorial International
Vestido exposto na mostra 'Material, a Memória Feminina do Gulag', da Memorial International - Anatassia Boutsko/DW

Em 1988, Sherbakova foi uma das criadoras da Fundação Memorial. "Nenhum de nós pensava então que a história de nosso país, de nossa sociedade, tomaria tal rumo", diz, em referência à dissolução da entidade. Ela vê as razões da situação atual, de "quase absoluta falta de liberdade", no fato de que nunca se lidou com os crimes da era Stálin.

"Até hoje, nossa sociedade está marcada pelo terror de Stálin: medo das autoridades, padrões duplos de acordo com o princípio 'pensar uma coisa, dizer outra, fazer uma terceira', encapsulamento em uma 'camada protetora' privada, desinteresse por tudo o que é social —tudo isso é o legado do terror", diz.

Repetidamente, o Judiciário russo acusou a Memorial International de violar uma lei de 2012 que permite ao país classificar as organizações que recebem pagamentos do exterior como "agentes estrangeiros". A Memorial é considerada um "agente estrangeiro" na Rússia desde 2016 porque é parcialmente financiada a partir do exterior. Por isso, um tribunal de Moscou decidiu proibir a organização de direitos humanos.

Para Sherbakova, a decisão não foi surpresa: "Somos os guardiões da memória daquela parte da história que o Estado russo preferiria esquecer, pois só quer lembrar suas conquistas e vitórias".

De qualquer modo, a historiadora quer continuar seu trabalho. Como fará isso, ainda não está claro.

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