Fala polêmica de bispo italiano evidencia briga da Igreja com Papai Noel

Clérigos católicos insistem que é preciso vincular a festa a Jesus Cristo, e até ultradireita italiana entrou na disputa

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Jason Horowitz
Roma | The New York Times

A única coisa que impediu os alegres aluninhos de uma escola siciliana de conhecer São Nicolau –que chegaria a cavalo, com sua barba branca comprida, vestes vermelhas e saco cheio de presentes— foi uma mensagem de Natal transmitida pelo bispo de Noto. "Papai Noel é um personagem imaginário", trovejou o bispo Antonio Stagliano.

As crianças ficaram desiludidas e de queixo caído. Por muitos longos minutos na basílica Santissimo Salvatore, o bispo continuou a falar mal de Papai Noel, que, segundo ele, não se importa com as famílias em maus lençóis financeiros.

Decorações de Natal em um shopping de Milão, na Itália - Flavio Lo Scalzo - 1.dez.20/Reuters

"A cor vermelha de sua roupa foi escolhida pela Coca-Cola para fins publicitários", disse o bispo. Segundo ele, a grande empresa de refrigerantes "utiliza a imagem de Papai Noel para projetar-se como um símbolo de valores sadios".

O ataque do bispo a Babbo Natale, como Papai Noel é conhecido na Itália, foi apenas o episódio mais recente de algo que virou uma nova tradição natalina no país. Praticamente todos os anos, clérigos católicos insistem que é preciso distanciar Papai Noel do Natal para que os italianos continuem a vincular a festa a Jesus Cristo.

Em 2019, um padre na cidade de Magliano Alpi, no norte do país, disse às crianças que não há homem trajando roupas vermelhas que entrega presentes "como num passe de mágica". Em 2018, em Quartu Sant’Elena, na Sardenha, outro padre arrancou lágrimas de crianças quando revelou que "Papai Noel" na realidade era seus pais e mães.

O episódio deste ano aconteceu em 6 de dezembro, dia de São Nicolau, e foi especialmente explícito, segundo Giuliana Scarnato, uma das professoras que acompanharam as crianças, nenhuma das quais com mais de 9 anos, num passeio escolar até a igreja de Noto.

Ela disse que o bispo "poderia ter deixado Papai Noel de fora" de seu discurso, mas em vez disso fez questão de afirmar que Papai Noel "é uma fantasia, que ele nunca existiu". Quando uma das crianças protestou, dizendo ao bispo que seus pais lhe haviam garantido que Papai Noel é de verdade, o clérigo respondeu que a menina deveria dizer a seus pais: "Vocês contam mentiras".

Já Stagliano disse que se expressou com mais tato, insistindo que apenas explicou que a origem de Papai Noel –que ele retratou como o produto nocivo do complexo consumista da indústria de refrigerantes— está num personagem histórico, São Nicolau. Reza a tradição que este, bispo de Mira, na atual Turquia, no século 4, tinha espírito caridoso e ajudava os pobres.

O bispo Stagliano manifestou opiniões fortes sobre o assunto. "Papai Noel é pai de todos ou apenas de alguns?", indagou, apontando falhas nos argumentos a favor de Papai Noel. "Durante o lockdown, Papai Noel não visitou as famílias que costumava visitar antes. Por quê? Com certeza não foi por medo do coronavírus."

Ele recordou em tom saudoso o tempo quando as crianças italianas endereçavam suas listas de desejos ao menino Jesus, "não a Papai Noel, às renas, vamos ao cinema, vamos ao boliche e toda essa baboseira americana".

Este ano, nacionalistas abriram uma nova frente nas divergências italianas em torno do Natal. Loucos por identificar uma questão que engaje a atenção do público num tempo de estabilidade política, eles se aferraram à alegação da direita americana de que se opõe à guerra ao Natal.

Para os nacionalistas, o alvo principal não é Papai Noel, mas a União Europeia.

Um jornal conservador italiano descobriu em novembro que o gabinete de um comissário da UE havia redigido diretrizes para as correspondências internacionais. As novas regras propostas pediam que fosse usada uma linguagem mais inclusiva, com neutralidade de gênero e que contivesse menos referências explícitas ao Natal.

"Nem todos comemoram os feriados cristãos, e nem todos os cristãos os festejam nas mesmas datas", diz o documento, que aconselhou funcionários a evitar frases como "o período natalino pode ser estressante". Melhor seria, sugere o texto, dizer que "o período das festas de fim de ano pode ser estressante".

O estresse foi imediato. Líderes da ultradireita não hesitaram em responder à altura. O líder nacionalista e ex-vice-primeiro-ministro Matteo Salvini postou nas redes sociais uma imagem de uma estátua decapitada da Virgem Maria jogada numa valeta.

Salvini, que não é especialmente religioso mas frequentemente se caracteriza como defensor da cristandade, escreveu no Facebook: "A Comissão Europeia pede que não festejemos o Santo Natal para não ofender a outros, e algum imbecil faz estas coisas grotescas".

Outra política nacionalista de direita, Giorgia Meloni, disse ao jornal conservador Libero que as diretrizes da UE são "vergonhosas". "Ninguém pode sentir-se ofendido por uma criança que nasceu numa manjedoura", ela acrescentou.

Até o papa Francisco, que já sugeriu que os líderes nacionalistas são pouco cristãos por se operem à chegada de migrantes, os ecoou no tocante ao cancelamento do Natal.

Perguntado este mês sobre o documento da UE, o papa disse que "é um anacronismo" e acusou o bloco de seguir o rastro de líderes totalitários. "Muitas ditaduras na história tentaram reduzir a influência da Igreja", ele disse. "Pense em Napoleão, depois pense na ditadura nazista, na ditadura comunista."

Mas Francisco não se mobilizou para defender Papai Noel contra as afirmações de seu bispo, e o Vaticano não respondeu a um pedido de comentários.

Stagliano argumentou que está totalmente alinhado com o papa. "Com todo o devido respeito", destacou. "Papai Noel só leva presentes a quem tem dinheiro", quer as crianças sejam travessas ou bem comportadas.

O bispo disse que as famílias pobres e os migrantes que ele visita todo ano no Natal "nunca viram Papai Noel". Por isso, exortou as crianças na igreja a pedir ainda mais presentes a Papai Noel e, se ele aparecer, lhe explicar que agora eles poderiam dar os presentes às crianças pobres, "já que o senhor nunca vai às casas delas".

Stagliano disse que nenhuma das mães na igreja ousou contradizê-lo e que algumas das crianças, encorajadas por sua pregação, falaram como se tivessem tido uma revelação. Uma das crianças teria declarado: "Eu sempre soube que Papai Noel era meu pai".

Quebrar o "feitiço" do Natal é um avanço, disse o bispo, contando que quando era pequeno, escrevia cartas a Papai Noel pedindo dinheiro e as colocava sob o prato de seu pai na mesa de jantar. E depois encontrava sob seu travesseiro um envelope com alguns milhares de liras italianas velhas.

Mas com 4 anos de idade ele já sabia que era seu pai quem lhe dera o dinheiro. E argumentou que as crianças de 7 anos sentadas na igreja também tinham consciência da realidade. O bispo, que tem 62 anos, disse que não destruiu nenhuma ilusão natalina. "Se nós já sabíamos", falou, aludindo à sua geração, "imagine estas crianças de hoje, com seus smartphones."

Segundo a tradição, São Nicolaus era bondoso com crianças e deu moedas de ouro a três irmãs pobres que, de outro modo, teriam tido que se prostituir. Ao longo dos séculos ele virou o santo padroeiro de muitas causas, entre elas as crianças, os donos de lojas de penhores e a Rússia. Até hoje muitos russos viajam à cidade de Bari, no sul da Itália, onde as relíquias de São Nicolau, roubadas por marinheiros séculos atrás, estão conservadas na basílica San Nicola.

A tradição de São Nicolau também se alastrou para o norte, onde os holandeses o conhecem como Sinterklaas, uma variante de São Nicolau. Os holandeses fundaram Nova Amsterdã, que mais tarde receberia o nome de Nova York, e os habitantes ingleses das colônias americanas anglicizaram o nome do santo para Santa Claus.

As renas, o trenó, a entrega de presentes na véspera de Natal e a barriga grande de Papai Noel foram acréscimos feitos no século 19, assim como o casaco vermelho, que já era a indumentária tradicional de Papai Noel muito antes de a Coca-Cola se envolver na história.

Mas assim que Papai Noel começou a promover refrigerantes, tudo foi por água abaixo, disse Stagliano às crianças na igreja.

Num esforço para conter as repercussões da fala do bispo, um porta-voz da diocese, dom Alessandro Paolino, escreveu na página da igreja no Facebook: "Em nome do bispo, manifesto meu pesar por essa declaração que gerou decepção nas crianças e quero deixar claro que a intenção de monsenhor Stagliano não foi essa".

Ele então retomou o fio da meada onde o bispo havia parado, criticando "Papai Noel como o consumismo, o desejo de possuir, de comprar, comprar e comprar novamente".

Stagliano disse que não é totalmente contra a ideia de dar presentes, mas que é preciso que sejam presentes pensados com cuidado, bem escolhidos –não "entregues pela Amazon"—e entregues pessoalmente.

Apesar do fervor de seu discurso contra Papai Noel, suas palavras acabaram não sendo páreo para a visão de São Nicolau a cavalo diante da igreja. As crianças o cercaram quando ele desceu do cavalo, acomodou-se num trono vermelho e distribuiu lápis, doces e outros presentes, contou a professora Giulia Scarnato.

"Quando elas saíram da igreja, o discurso do bispo não teve mais o mesmo impacto, porque elas ficaram fascinadas com São Nicolau", ela contou. "Ficaram felizes."

Tradução de Clara Allain

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