Fritura de Boris Johnson ganha novo impulso com derrota eleitoral em reduto conservador

Premiê britânico é alvo de críticas por série de escândalos que colocam em dúvida sua permanência no poder

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

BAURU (SP)

Ainda é cedo para dizer que os dias de Boris Johnson no governo do Reino Unido estão contados. Mas o premiê britânico enfrenta uma onda de derrotas —diante da opinião pública, devido a uma série de escândalos recentes, dentro do próprio partido e em disputas eleitorais, como aconteceu nesta sexta (17).

É possível que sua única alegria nas últimas semanas tenha sido o nascimento de mais uma filha, batizada de Romy.

Em meio a um processo de fritura ao qual vem sendo submetido por membros de sua própria legenda, Boris assumiu a responsabilidade, em nível pessoal, pela derrota do Partido Conservador em North Shropshire —historicamente, um reduto dos conservadores.

O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, durante entrevista coletiva em Downing Street - Hollie Adams - 27.nov.21/AFP

Um olhar menos atento sobre o resultado do pleito regional poderia não dar a dimensão da perda, afinal North Shropshire, isoladamente, não tem peso tão decisivo no jogo político britânico em âmbito nacional. Mas a maneira como a votação se desenrolou e o simbolismo dos resultados estão sendo considerados um prenúncio da derrocada dos conservadores —ou, mais especificamente, de Boris.

A liberal democrata Helen Morgan conquistou quase 6.000 votos a mais que o conservador Neil Shastri-Hurst. Perder eventualmente faz parte do jogo, mas o último pleito em North Shropshire, em 2019, teve vitória do partido de Boris com 23 mil votos de vantagem.

Além disso, os legisladores do Partido Conservador dominavam a região há quase 200 anos e nunca haviam sido derrotados desde que North Shropshire foi criada em sua forma atual, em 1983. Vale lembrar ainda que a eleição só foi convocada porque o último ocupante do cargo, o conservador Owen ​Paterson, renunciou após acusações de conflito de interesses entre vida pública e privada. Boris tentou mudar regras para ajudá-lo a permanecer no cargo, mas não teve sucesso.

"Nesta noite, o povo de North Shropshire falou em nome do povo britânico. Eles disseram em voz alta e clara: 'Boris Johnson, a festa acabou'", disse Morgan em seu discurso de vitória. "Seu governo, movido por mentiras e papo furado, será responsabilizado. Será examinado, será contestado e pode e será derrotado."

A conta dessa derrota está sendo cobrada do primeiro-ministro —e ele, seguindo a metáfora, já assinou a ordem de pagamento. "Claramente, a votação em North Shropshire é um resultado muito decepcionante, e eu entendo totalmente a frustração das pessoas", disse Boris em uma entrevista coletiva nesta sexta.

"Eu ouço o que os eleitores estão dizendo em North Shropshire e, com toda humildade, tenho que aceitar esse veredicto. Claro que assumo a responsabilidade pessoal."

Apesar da hegemonia histórica na região, vários correligionários de Boris previam a derrota. Mas mesmo eles ficaram surpresos com a extensão da vitória da oposição. "Os eleitores em North Shropshire estavam fartos e nos deram um chute, e acho que queriam nos enviar uma mensagem", disse Oliver Dowden, presidente do Partido Conservador, em entrevista à Sky News.

Questionado por uma rádio britânica se ainda queria Boris na linha de frente do partido para as próximas eleições nacionais, em 2021, Dowden respondeu: "Sim, e vou te dizer por que quero que ele nos lidere nas próximas eleições. Se você olhar para as grandes decisões, o primeiro-ministro acertou".

Boris costuma ser creditado como o principal responsável pela ampla vitória nas eleições de 2019, embora agora seja acusado de estar desperdiçando o capital político conquistado. O pleito em North Shropshire, apesar do âmbito regional, serviu como referendo da avaliação popular sobre o governo e pode ser o gatilho para alterações de rota no comando do país.

Há vários fatores que contribuíram para a insatisfação com a conduta do primeiro-ministro. Os principais deles estão relacionados à pandemia de coronavírus. O Reino Unido vive uma alta de casos de Covid-19 —impulsionada pela variante ômicron, potencialmente mais contagiosa— e registrou nesta sexta mais um recorde de infecções diárias. Foram 93.045 casos, superando a marca alcançada na véspera.

Além disso, o Parlamento aprovou, no início da semana, um novo conjunto de restrições. O Plano B, como foi nomeado o pacote, prevê ações como a obrigatoriedade do uso de máscaras na maior parte dos locais fechados, a vacinação de profissionais da saúde e a exigência do certificado de vacinação para acesso a determinados espaços.

Seria natural esperar que medidas como essas, ainda que justificadas por evidências científicas, causassem algum desconforto entre os britânicos, cansados do vaivém das restrições após dois anos de pandemia. Mas, para o premiê, o maior desgaste foi no campo da política institucional —e, pior, dentro do Partido Conservador.

Vários dos colegas de Boris na legenda descreveram as medidas como atentados às liberdades individuais e dezenas foram na contramão das medidas: 38 votaram contra a exigência das máscaras, 96 contra a vacinação obrigatória dos profissionais de saúde e mais 96 contra a exigência do passe sanitário. Ainda que o Plano B tenha sido aprovado —com apoio da oposição—, o racha estava mais do que exposto.

Porém, aos olhos da opinião pública, a suposta hipocrisia do alto escalão do governo soa mais grave do que a emergência sanitária. A série recente de escândalos começou quando veio à tona uma festa que teria sido realizada em Downing Street, sede do governo, durante a época de Natal de 2020, quando celebrações presenciais estavam proibidas em razão de restrições sanitárias. O episódio levou à renúncia de uma assessora de Boris.

Outra situação semelhante foi revelada nesta quinta-feira (16) pelos jornais britânicos The Guardian e The Independent. Segundo fontes ouvidas na investigação jornalística, um grupo de cerca de 20 funcionários do governo fez uma festa em 15 de maio de 2020, também em Downing Street.

Mais cedo, naquela mesma noite, o então secretário de Saúde do Reino Unido, Matt Hancock (ele próprio envolvido mais tarde em um escândalo de natureza sexual), havia feito um pronunciamento público exortando os britânicos a "ficarem em casa o máximo possível" e pedindo "por favor, cumpram as regras, fiquem de olho em sua família e não corram riscos".

Tanto Boris quanto Hancock, porém, estiveram na festa. Os relatos são de que o premiê e o secretário permaneceram por pouco tempo em Downing Street na ocasião, enquanto os demais funcionários do governo ficaram comendo pizza e bebendo vinho e destilados até tarde da noite —embora as regras vigentes à época permitissem reuniões de apenas duas pessoas de lares diferentes, desde que em ambientes externos e com distanciamento mínimo de dois metros.

Novas revelações levaram nesta sexta a mais uma renúncia no governo: Simon Case, secretário de gabinete que liderava as investigações sobre as festas, deixou o cargo depois de a mídia britânica apontar que uma celebração também foi feita em seu escritório durante o período de restrições. Sue Gray, segunda secretária permanente de gabinete, assumirá a apuração.​

Também pesa contra Boris um episódio em que ele foi responsabilizado —e seu partido, multado— por uma reforma feita na residência oficial com verba não declarada oriunda de uma doação privada. Há ainda queixas contra o premiê por tentar mudar normas parlamentares para ajudar aliados políticos, por suas férias luxuosas no exterior, pelos vínculos duvidosos com algumas empresas e por acusações de clientelismo na designação de cadeiras na Câmara dos Lordes (equivalente ao Senado).

A favor do premiê está sua reconhecida habilidade pessoal e política de desviar das crises —que os jornais britânicos eventualmente descrevem como um tipo de malandragem. Resta saber até onde o escapismo de Boris é capaz de conduzi-lo.

Parlamentares ouvidos em anonimato pelo Guardian estão divididos sobre o jogo de cintura dele para mudar de abordagem antes que seja tarde demais. Nas palavras de um deles, Boris e o Partido Conservador estão entrando agora em "uma tempestade perfeita de merda".


Boris Johnson pode ser deposto?

Sim, mas o processo é burocrático e demanda articulação política além dos bastidores. Para isso acontecer, ao menos 15% da bancada do Partido Conservador (55 dos 361 correligionários de Boris) no Parlamento precisa escrever cartas ao órgão conhecido como Comitê de 1922. Se houver esse quórum, é convocado o que o sistema parlamentarista chama de "voto de confiança".

Como funciona o voto de confiança?

As cartas ao Comitê de 1922 são confidenciais, então a única pessoa que sabe informar quantos pedidos pelo voto de confiança foram enviados é o presidente do órgão, Graham Brady. É ele também quem decide a data da possível votação, em consulta com o líder do Partido Conservador.

Em 2018, quando a então primeira-ministra Theresa May enfrentou um voto de confiança, a votação foi realizada no mesmo dia que o presidente do Comitê anunciou ter recebido cartas suficientes para dar início ao processo.

Aberta a votação, todos os parlamentares conservadores podem votar a favor ou contra Boris. Se o premiê vencer, ele permanece no cargo e não pode ser novamente contestado pelos próximos 12 meses. Se perder, é forçado a renunciar e impedido de concorrer na escolha do próximo líder.

Com Reuters

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.