Hospital em Portugal acusa homem com dores de carregar drogas no intestino

Jorlan Vieira, de origem brasileira e austríaca, afirma que médicos o humilharam por xenofobia e racismo

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Joana Gorjão Henriques
Público

Em 23 de setembro, uma quinta-feira, Jorlan Nestlehner Vieira, 35, dirige-se ao Hospital Lusíadas, em Lisboa, com fortes dores lombares. São cerca das 9h45 e entra numa consulta de urologia.

Depois de observado, o médico pede-lhe para fazer uma tomografia computadorizada. Entra na emergência, faz a triagem, coloca uma pulseira. Depois de analisado o exame, outra médica comunica-lhe: "O Jorlan tem aqui duas massas radiodensas no intestino de cerca de dois centímetros de diâmetro".

Jorlan Vieira ficou "desesperado", porque tem "avó, tios, tias e primos que morreram com câncer". "Caiu-me tudo", diz ao Público. O que relata a seguir é a sua versão da sucessão de eventos que levaram o seu advogado, Carlos Pinto de Abreu, a enviar uma carta ao hospital afirmando que Jorlan foi vítima de suspeita e acusação insidiosas, "difamado, humilhado e objeto de tratamento degradante, muito possivelmente por preconceito e/ou xenofobia".

Ambulância perto de um hospital na região do Porto durante a pandemia de Covid - Violeta Santos Moura - 8.fev.21/Reuters

O advogado diz ainda que Jorlan Vieira foi alvo de detenção ilícita, violação do sigilo médico, abuso de poder e tortura policial fora de processo por alguns agentes, sem que os profissionais de saúde se opusessem. Contatado, o Hospital Lusíadas nega tudo.

Voltando ao relato, Jorlan Vieira conta ao Público que nessa altura a médica lhe diz que iria falar com outra médica de plantão para debater o que eram aquelas "massas". Entretanto, pergunta-lhe: "Com esse nome, o Jorlan não é português, pois não?".

Vivendo em Portugal desde 2009, de origem brasileira e austríaca e com nacionalidade portuguesa, responsável de duas lojas da Meo e trabalhando há oito anos na Myphone, Jorlan Vieira já era paciente do Hospital Lusíadas, onde fez tratamento na vesícula. Afirma: "Sei definir pelo tom se a pergunta sobre a minha origem é naquela de criar empatia. O tom de voz dos médicos já denunciava qualquer coisa".

Passa-se mais de uma hora. Outra médica chama-o, faz as mesmas perguntas: qual a sua origem, onde mora. "Perguntou se eu usava droga, se alguma vez fiquei desacordado [após desmaio], se já me obrigaram a engolir qualquer coisa, qual tinha sido a última vez que tinha viajado." Jorlan Vieira respondeu que não a tudo e que não viajava desde 2019.

No relatório médico a que o Público teve acesso, refere-se que uma terceira médica recebeu a informação da colega de que estava um paciente no balcão suspeito de ter ingerido substâncias ilícitas e que após discussão com a direção clínica se contataram as autoridades responsáveis.

Refere ainda que a equipe de radiologia não excluiu a hipótese levantada e que, com os agentes presentes, se procedeu à terapêutica laxante. Nesse mesmo documento escreve-se que Jorlan tinha dito que tomou dois benurons e um brufen (analgésicos). Jorlan Vieira estava longe de imaginar o que se seguiria, de acordo com o seu relato. Mais duas horas se passaram. Estava sem comer desde a manhã. Queixa-se aos profissionais disso, a médica chefe de equipe dá ordens para lhe colocar soro.

Chamam-no: "Entro dentro da sala e tenho as médicas todas, mais dois senhores que se identificaram como da radiologia. Do meu lado esquerdo há dois senhores que se identificam como inspetores da polícia, mas não estavam fardados. Dizem-me: ‘Recebemos uma queixa do hospital, o senhor transporta substâncias ilícitas dentro do intestino. O que tem podem ser bolotas de cocaína.’ Nessa altura sentei-me, olhei para a cara da médica. Bloquei por completo."

Incrédulo, Jorlan Vieira responde que não faz ideia do que tem, mas que tem a certeza absoluta de que não é droga. A médica evoca um protocolo para justificar a denúncia que obriga a reportar às autoridades este tipo de situação. "Mas denunciar o quê? O que os faz pensar que tenho cocaína?", questionou.

São 18h, nove horas depois de ter entrado no hospital com a dor lombar que entretanto não passou. Chegam polícias da PSP (Polícia de Segurança Pública) à paisana e avisam-no que "ninguém sai enquanto não se perceber o que está aí dentro". Se se recusar seria considerado culpado.

A médica informa-o: "Temos duas opções, há uma preparação que damos quando as pessoas vão fazer um exame que demora algum tempo a surtir efeito e tem outro medicamento, um pouco mais agressivo, mas passado uns minutos a coisa acontece mais rapidamente".

Jorlan Vieira responde que opta pela "solução mais rápida". A médica alerta: "O medicamento é eficaz, mas um bocado corrosivo, se o que o Jorlan tem aí dentro for uma bolota de cocaína corre o risco de corroer a película que a envolve e se rebentar tem uma overdose".

Jorlan Vieira diz que vai tomar: "O que tenho cá dentro não é uma bolota". Os agentes dão uma explicação evasiva sobre o procedimento seguinte. "Não imaginava o que estava para vir."

Fezes remexidas

Dirigem-no para outra sala, seguido pelos agentes à paisana. Mandam-no tomar o medicamento. Dizem que vão buscar uma arrastadeira e que se podem deslocar todos ao banheiro. Jorlan Vieira ainda estava recebendo o soro, com o cateter no braço. Sentiu cólicas. "A seguir tinha que ir para o banheiro com o policial atrás, evacuava no penico, o policial punha as luvas e mexia naquilo à minha frente."

O cenário que descreve é de "humilhação". Entretanto, esses dois polícias foram jantar; seriam substituídos por três outros agentes. Repete-se o procedimento, cólicas/banheiro. Mas um deles recusa mexer nas fezes e força Jorlan Vieira a fazê-lo. "Meto as luvas e estou a mexer nas minhas fezes à frente dele… Continuo nesta rotina, uma, duas, três garrafas…"

Há outra troca de turno, entra mais um agente. "Tive que passar por isso tudo em frente a seis pessoas diferentes." E isto sem acompanhamento médico, apenas com a polícia. O processo começou pelas 19h e durou até cerca da 1h. Estava há 15 horas sem comer, sentia-se a desfalecer.

Entretanto, informa um outro médico de que já não conseguia beber mais água. Faz uma segunda TAC, onde a imagem de massa radiodensa se mantinha. "Agora só com uma colonoscopia", afirmou o médico. Foi aí que Jorlan Vieira se opôs, "temendo pela sua integridade física". "Não vou levar um sedativo deste gênero. Só o faço na presença de um advogado."

O agente faz um telefonema a alguém e diz: "Pode ir à sua vida, só preciso da alta médica".

No relatório, o médico escreve que o policial ligou ao "comandante", que, por sua vez, referiu que, não se tendo provado a toma de substâncias ilícitas, "cessava a vigilância policial". Este comandante era da PSP –o cargo não existe na PJ (Polícia Judiciária)–, mas é a PJ a entidade a quem cabe a investigação deste tipo de casos. Por que estava lá a PSP e não a PJ? Nem o Hospital Lusíadas nem a PSP explicaram.

Naquele momento, Jorlan Vieira informa o médico de que continua com dores; este aconselha-o a fazer a colonoscopia. Quando Jorlan Vieira sai finalmente de madrugada o seu carro tinha sido rebocado.

Em choque e a recuperar do que lhe acontecera, é só uma semana depois que Jorlan Vieira decide fazer a colonoscopia, mas noutro hospital. A massa desaparecera. Possivelmente terão sido os dois benurons que tomara para acalmar as dores, sugere o médico.

"Senti revolta", conta. "Literalmente fui tratado como lixo. Estamos a falar de integridade física e mental, fizeram uma coisa contra o meu corpo com base no fato de eu ser estrangeiro. Perdi um dia de trabalho, sou submetido àquilo porque uma cabeça resolve olhar para uma TAC e olhar para um estrangeiro e dizer que é droga."

Mais do que indenização, Jorlan Vieira decidiu denunciar o caso para que não se volte a repetir. "Ainda sou branco, se tiver a boca fechada ninguém sabe de onde sou. Quantas pessoas sofrem isso e ninguém faz nada? Sinto que preciso fazer alguma coisa. Se não fizer nada, quantos coitados vão passar por isso?"

Na carta, o advogado questiona: "É protocolo do hospital a violação do sigilo médico? A denúncia infundada de utentes às autoridades policiais antes de obter um diagnóstico preciso e de garantir o devido tratamento?" Acusa ainda o hospital de não proteger quem "está doente": "O foco durante todo aquele tempo não foi analisar a situação clínica do utente, cuidar da sua saúde, empregar todos os meios técnicos para o tratar, mas sim colocar outros meios ao serviço de uma suposta investigação policial absurda, ilícita, humilhante e atentatória da sua própria saúde, física e mental".

Ao Público o Hospital Lusíadas confirma ter recebido a carta do advogado "contendo o relato de um conjunto de fatos sem qualquer correspondência com a realidade do processo clínico em causa". Diz que está a avaliar a situação e que "deposita total confiança na integridade e profissionalismo do seu corpo clínico, o qual, no caso em apreço, agiu no mais estrito cumprimento da lei e daqueles que são os seus deveres para com os pacientes e a comunidade em que se insere".

Não responde a nenhuma das questões colocadas pelo Público, como: qual o protocolo referido, quantos casos de transporte de droga no intestino é que o hospital detectou desde que abriu, quantas vezes estas médicas e este hospital submeteram pacientes a procedimentos deste tipo e quantos destes eram portugueses? A PSP também não respondeu às questões colocadas nesta segunda-feira à tarde.

Hospital de São José nunca se deparou com médico a denunciar

Em geral, os hospitais têm algum protocolo para seguir em casos semelhantes? Como é que as autoridades lidam com este tipo de situações? Quão frequente é em Portugal haver pacientes nos hospitais com bolotas e os médicos os denunciarem?

A Ordem dos Médicos refere que não há um protocolo nesta área. Também o Hospital de São José, para onde são encaminhados casos detectados pelas autoridades sobretudo no aeroporto de Lisboa, diz que não tem "conhecimento de qualquer protocolo instituído".

Sem conhecer o caso concreto, o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central, ao qual o São José pertence, afirma mesmo nunca se ter deparado com uma denúncia por parte de um médico: "Não temos conhecimento de ter havido notificação à polícia da parte de um médico do CHULC, já que os indivíduos que se encontram na situação descrita não vêm de livre vontade à urgência a não ser já em condição emergente, o que nunca terá acontecido na Urgência do CHULC (H. S. José). Habitualmente, estes casos chegam-nos já acompanhados por elementos da Polícia Judiciária".

Ou seja, é a PJ que indicia a suspeita, e "a abordagem hospitalar é clínica" e "dirigida a forçar a eliminação natural das bolotas que é testemunhada pelos elementos da PJ e guardada por eles como prova". Toda a "abordagem médica" é feita "no interesse da proteção do indivíduo suspeito enquanto doente", afirma. O CHULC não sabe contabilizar o número de casos de indivíduos com bolotas de droga que passaram pelo hospital.

Segundo a PJ, que investiga o tráfico de droga internacional, os casos de transporte de droga no corpo são diminutos em relação ao total: em 2021 foram identificados cinco casos (eram 23 como correios de droga em geral), em 2020 foram 26 (eram 69 como correios geral) e em 2019 foram 64 (eram 187 como correios em geral).

Artur Vaz, diretor da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes (UNCTE) desde 2018, não comenta este caso concreto. Afirma que, por regra, a suspeita é feita pela investigação e por outras autoridades policiais ou de prevenção do tráfico. "Às vezes é o próprio SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras] que indica."

De qualquer forma, quando há indício forte de que a pessoa transporta droga no interior do corpo, é conduzida a um hospital. "Se tem essa desconfiança, um raio-x tira qualquer dúvida", afirma. Confirmando-se a presença das "embalagens" pelos exames médicos, prossegue-se com o tratamento para expelir as referidas. O diretor diz, porém, que o processo de expelir é feito em privado. Tem que haver um controle da polícia, mas a pessoa tem que ter essa privacidade. Caso contrário, seria "violar a dignidade das pessoas".

Normalmente, as bolotas têm entre cinco a seis centímetros, no interior transportam-se várias, e podem variar entre os 600 gramas e os dois quilos, refere. Há casos raros, "marginais", em que as pessoas se deslocam ao hospital, mas por desespero, porque temem que as bolotas rebentem e denunciam-se.

Por regra, os correios de droga são "pessoas frágeis, que estão em situações de pobreza, o que os torna alvos fáceis para serem recrutados pelas organizações criminosas", descreve.

Na carta que enviou aos Lusíadas, Jorlan Vieira e o advogado solicitam uma reunião ao hospital, a assunção de responsabilidades, um pedido de desculpas e uma compensação. Caso contrário iriam recorrer a todos os meios para fazer valer os seus direitos. Até à hora do fecho desta edição não tinham recebido resposta.

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