Descrição de chapéu Governo Biden

Com falas genéricas, Cúpula da Democracia não terá declaração final

Evento reúne líderes de 91 países, incluindo de governos que atuam de modo autoritário

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Washington

As dificuldades enfrentadas pela democracia são o desafio definidor do nosso tempo, disse Joe Biden, presidente dos EUA, ao dar início nesta quinta (9) à Cúpula da Democracia, evento virtual com a participação de 91 países para tentar buscar novas formas de garantir participação popular na política. ​

No entanto, as saídas para resolver o problema não serão rápidas, e o encontro, que termina nesta sexta, não deverá ter uma declaração final, que poderia sintetizar os pontos de acordo entre os participantes.

Com falas genéricas da maioria dos líderes, esta primeira cúpula foi considerada um pontapé inicial para ações que serão tomadas ao longo do ano que vem, quando um novo evento do tipo deverá ocorrer.

O presidente Joe Biden, durante a abertura da Cúpula da Democracia
O presidente Joe Biden, durante a abertura da Cúpula da Democracia - Leah Millis/Reuters

Até agora, entre medidas práticas do encontro, o governo dos EUA anunciou um pacote de US$ 424 milhões para apoiar iniciativas em cinco áreas: apoiar a imprensa independente, combater a corrupção, reforçar reformas democráticas, adotar novas tecnologias e defender a realização de eleições. A destinação exata dessas verbas, no entanto, ainda será definida nos próximos meses.

Em relação à liberdade de imprensa, que Biden chamou de "pedra fundamental da democracia", serão fornecidos US$ 30 milhões para ajudar mídias independentes a se manterem, nos EUA e no exterior. E outro fundo, inicialmente de US$ 9 milhões, será destinado a proteger jornalistas alvo de ameaças ou processos por fazerem seu trabalho. A ideia é que outros países também invistam nas iniciativas.

O Departamento de Estado dos EUA anunciou a criação de uma Coordenação Anticorrupção Global, para integrar e ampliar ações e colocar em prática estratégias para dificultar a circulação de dinheiro público roubado pelo mundo. O governo americano divulgou também novas sanções contra autoridades estrangeiras acusadas de enriquecimento ilícito, numa lista que inclui Carlos Bermeo Casas, ex-procurador colombiano acusado de receber propina para ajudar narcotraficantes, Nestor Moncada Lau, conselheiro do regime de Daniel Ortega na Nicarágua, Martha Berthal, chefe de gabinete em El Salvador, e Isabel dos Santos, filha de um ex-presidente de Angola e acusada de desviar milhões.

O governo americano espera que outros países divulguem novos projetos e se juntem aos atuais. De acordo com um funcionário sênior da Casa Branca, em condição de anonimato, outros governos estão respondendo ao pedido da Casa Branca em termos de apoio financeiro.

A ideia do encontro é que os governos apresentem compromissos voluntários. Como na Cúpula do Clima, realizada em abril, os países deverão fazer um monitoramento conjunto dos avanços uns dos outros, sem que esteja claro quais seriam as punições no caso de retrocessos, o que gera dificuldades na fiscalização.

Há também questionamentos sobre como criar métricas que possam dar conta de aferir os avanços e os retrocessos de cada país. "Uma métrica fácil seria se propor a ajudar, digamos, mil ativistas de direitos humanos sob ameaça. Mas como mensurar um avanço da cultura antidemocrática que atinge determinado país? Os participantes terão de pensar bastante sobre criar parâmetros que sejam aceitos por todos", comenta um representante da sociedade civil que ajuda na organização do evento.

A cúpula foi alvo de críticas, ainda, por convidar governantes acusados de agir diversas vezes de modo antidemocrático, como o premiê indiano, Narendra Modi, e os presidentes de Filipinas, Rodrigo Duterte, Polônia, Andrzej Duda, e Brasil, Jair Bolsonaro (PL). Nos últimos anos, eles protagonizaram ações para cercear opositores, enfraquecer o Judiciário, questionar sistemas eleitorais e atacar a imprensa. Por outro lado, os EUA vetaram a participação de governantes de países como Bolívia, China, Hungria e Rússia.

Em sua fala de abertura, Biden citou autocratas que tentam ampliar seu poder à força e apontou o aumento da polarização política, sem citar nomes. "Estamos muito preocupados com toda a crescente insatisfação das pessoas pelo mundo com governos democráticos. Elas sentem que [os líderes] estão falhando em atender suas necessidades. Na minha visão, este é o desafio definidor do nosso tempo."

O líder americano falou em frente a um telão que reunia 91 líderes estrangeiros. ​Bolsonaro era um dos espectadores. Nem todos os países convidados tiveram governantes participando dessa conversa.

"A democracia precisa de defensores. Quis organizar esta cúpula aqui nos EUA porque sabemos que renovar nossa democracia e fortalecer nossas instituições requer esforço constante. A democracia na América está em uma luta contínua para manter nossos ideais elevados e curar nossas divisões", disse Biden. "A democracia não acontece por acidente. Precisamos renová-la a cada geração. A Freedom House relata que 2020 foi o 15º ano em que houve recuo na liberdade global", disse Biden.

Todo ano, a ONG Freedom House avalia a qualidade das democracias no mundo. Segundo a entidade, os EUA tiveram um declínio na liberdade entre 2010 e 2020, motivado por corrupção, conflitos de interesse e falta de transparência. O país saiu da nota 94 (de 100) para 83. O Brasil é considerado um país livre, com nota 74. Dois países barrados na cúpula, Bolívia e Hungria, tiveram nota mais alta (66 e 69) do que as Filipinas (56), que foi convidada. Já China (9) e Rússia (20) são países não livres segundo a entidade.

A China tem feito ataques ao evento: diz que os EUA o utilizam para impor seu poder e que não cabe aos americanos definir o que é ser democrático. "O verdadeiro propósito da cúpula [para os EUA] é dividir o mundo em blocos sob o pretexto da democracia, a fim de cercear e explorar outros países e preservar sua hegemonia econômica, financeira, tecnológica e militar. Na sua essência, é um neocolonialismo disfarçado de democracia", criticou Yang Wanming, embaixador da China no Brasil, à Folha.

Biden reconhece que os EUA enfrentam desafios com a democracia e diz que os americanos buscam criar um encontro de troca de experiências entre vários países, sem imposições. "Democracias não são todas iguais. Não concordamos em tudo nesta reunião hoje. Mas as escolhas que fizermos juntos vão definir o curso de nosso futuro compartilhado para as próximas gerações", afirmou o presidente americano.

Após a fala de abertura, houve uma reunião virtual entre os líderes, a portas fechadas. Depois, debates abertos ao público sobre como reforçar a democracia, recuperar instituições após a pandemia e combater a corrupção. As discussões contam com governantes, especialistas e representantes da sociedade.

Na sexta, as atividades começam às 8h, com discurso de António Guterres, secretário-geral da ONU. Em seguida, haverá discussões sobre proteção aos direitos humanos, combate ao autoritarismo e uso da tecnologia. Às 15h30, Biden fará a fala de encerramento da cúpula. Apenas uma brasileira foi chamada para participar dos debates públicos oficiais do encontro. Na quarta-feira (8), a ativista Patricia Zanella esteve em uma sessão sobre como ampliar a participação feminina na política.

Ao longo dos dois dias, são exibidos, via internet, vídeos gravados com discursos dos líderes mundiais, nos quais eles devem dizer seus compromissos para reforçar a democracia. O vídeo de Bolsonaro está previsto para ser exibido às 11h30 (13h30 em Brasília). Em nota divulgada nesta quinta (9), o Itamaraty disse que, no vídeo, "Bolsonaro reitera o compromisso do Brasil com a proteção das liberdades fundamentais e a promoção de uma cultura de diálogo, liberdade e inclusão social, sem discriminação".

O ministério acrescenta que o presidente mencionou o combate à corrupção, "inclusive por meio da aprovação do Plano Anticorrupção, com vistas à consolidação de uma administração pública transparente". No documento que formalizou os compromissos do Brasil, enviado aos organizadores da cúpula antes do evento, o governo brasileiro acusa a mídia profissional de desinformação e pede liberdade de expressão para vozes de diferentes ideologias. Bolsonaro afirma frequentemente que vozes conservadoras têm sido perseguidas e censuradas por plataformas de internet e pelo STF.

As apresentações da cúpula podem ser vistas no site do evento, que oferece tradução em português.


Resumo das medidas anunciadas pelo governo dos EUA


1. Apoiar a imprensa independente

  • Criação do Fundo Internacional para a Mídia de Interesse Público, voltado para ajudar meios de comunicação a se manterem. Aporte inicial será de US$ 30 milhões.
  • Criação do Fundo de Defesa contra a Difamação para Jornalistas, para ajudar profissionais a se defenderem de ataques físicos, virtuais e de ações na Justiça. Aporte inicial de US$ 9 milhões, e de mais US$ 3,5 milhões para criar uma Plataforma de Proteção ao Jornalismo.

2. Combater a corrupção

  • Formação de um Consórcio Global Anticorrupção, com participação do Departamento de Estado e verba inicial de US$ 6 milhões, com objetivo de conectar e apoiar jornalistas e entidades civis que fiscalizam gastos públicos.
  • US$ 5 milhões em um programa de proteção para delatores, ativistas, jornalistas e outros agentes anticorrupção em risco.
  • Mudanças para ampliar a transparência de negócios nos EUA, como a compra de imóveis em dinheiro vivo, de modo a dificultar lavagem de recursos.
  • Criação de programas de parcerias com empresas e ONGs para criar novos mecanismos de fiscalização.

3. Ampliar participação democrática

  • US$ 33,5 milhões em uma iniciativa para ampliar a presença de mulheres na política. Haverá também um fundo de US$ 5 milhões para a inclusão e empoderamento de pessoas LGBTQIA+.
  • US$ 10 milhões para apoiar entidades civis e de direitos humanos em risco.
  • US$ 122 milhões para ajudar trabalhadores pelo mundo a reivindicarem seus direitos.

4. Avançar em tecnologias

  • Defender o modelo de internet aberta, segura e estável e expandir iniciativas digitais de promoção de valores democráticos.
  • Medidas para impedir o uso da internet para desrespeitar direitos humanos. Haverá US$ 4 milhões para um fundo destinado ao combate à censura.

5. Defender eleições livres

  • US$ 2,5 milhões para uma Coalizão para Assegurar Integridade Eleitoral, que unirá governos e ONGs.
  • US$ 17,5 milhões para um Fundo de Defesa de Eleições Democráticas, para buscar soluções de combate a tentativas de desacreditar votações.
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.