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Migrantes se arriscam em Darién, uma das rotas mais perigosas do mundo

Selva na fronteira com a Colômbia não impede Panamá de registrar maior fluxo da história em 2021

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Darién

Três dias depois de não ter conseguido evitar a morte da esposa e da filha de 14 anos e de ver o cunhado, a sobrinha e a irmã grávida de sete meses serem arrastados pelas águas do rio que cruzavam, o angolano Nicolau, 37, chorava longe das três crianças que conseguiu salvar: uma filha, um filho e um sobrinho.

Fazia muito calor, e o mau cheiro vazava dos banheiros químicos colocados na parte mais baixa do centro de recepção de migrantes de San Vicente, na fronteira do Panamá com a Colômbia. Nicolau não tinha forças. Seu corpo se curvava buscando apoio nos joelhos. Falava com a voz baixa, usando frases curtas.

Migrante haitiana amamenta seu filho em um acampamento improvisado em Bajo Chiquito, no Panamá; milhares cruzam a floresta de Darién para tentar chegar aos EUA
Migrante haitiana amamenta seu filho em um acampamento improvisado em Bajo Chiquito, no Panamá; milhares cruzam a floresta de Darién para tentar chegar aos EUA - Andre Liohn

Estaria ali sozinho não fosse uma mulher que não conhecia ao seu lado, também chorando. Ambos estavam sentados na mesma cama dobrável e suja onde muitas outras pessoas já haviam chorado.

O local recebe migrantes de todos os continentes, raças e religiões. Os únicos traços comuns são a pobreza e a vontade de deixar essa condição. A área de 10 mil metros quadrados delineados por uma cerca e portões de ferro fica 10 km ao norte de Meteti, principal cidade na região panamenha de Darién.

O centro é capaz de abrigar até 3.000 pessoas. Aqueles que, além de familiares e amigos, também perderam o dinheiro que tinham para ladrões, permanecem presos ali até conseguirem os US$ 40 (R$ 223) necessários para seguir a viagem até a Costa Rica, pouco mais de 1.000 km ao norte.

O estreito de Darién consiste em uma grande bacia hidrográfica entre a província de mesmo nome, no Panamá, e a porção norte do Departamento de Chocó, na Colômbia. A região é inóspita e frequentemente usada por paramilitares e traficantes de droga, além de quadrilhas que costumam abandonar, roubar e abusar sexualmente de milhares de migrantes que tentam cruzar uma distância de aproximadamente 50 km dentro da mata virgem que separa os povoados de Acandí, na Colômbia, e Bajo Chiquito, no Panamá.

Segundo o Serviço Nacional de Migração Panamenho, de janeiro a outubro mais de 121 mil migrantes entraram no Panamá pela floresta de Darién. O ano de 2021 marca o maior fluxo migratório já observado pelo Panamá em sua história. Embora o trânsito ilegal de migrantes da América Latina e do Caribe para a América do Norte não seja um fenômeno novo, um aumento desse tipo de migração foi identificado nos últimos meses, principalmente de asiáticos, africanos e caribenhos.

Segundo o governo do Panamá, o padrão e o número de migrantes que passam pelo país tentando chegar aos EUA começou a mudar entre 2014 e 2015. Desde então, o aumento do fluxo migratório superou a capacidade que o governo panamenho tem de recebê-los. Em 2018, 9.222 migrantes entraram no Panamá de modo ilegal cruzando a floresta. Em 2019, essa cifra subiu para cerca de 22 mil, um aumento especialmente visível entre menores de idade (3.956) e gestantes (411).

Em 2020, o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) informou que mais de 20 mil crianças e 3.000 gestantes cruzaram a selva de Darién.

Atualmente, 65% dos migrantes são haitianos, que emigram devido à grave crise política e econômica enfrentada no país natal. Outros milhares, também haitianos, partem de países como Brasil e Chile.

Bajo Chiquito, uma aldeia indígena habitada pelo povo embera, é a primeira comunidade panamenha que os migrantes encontram após cruzar a floresta de Darién. Ali também ocorre o primeiro contato com as autoridades do departamento de migração do país, que os cadastram. Depois, se puderem pagar pelo transporte, os migrantes podem seguir viagem até o próximo centro de acolhimento, em Lajas Blancas ou San Vicente. O custo cobrado pelos indígenas para levá-los é de US$ 25 (R$ 140) por pessoa, e a viagem leva seis horas, com as canoas motorizadas navegando rio abaixo.

Os imigrantes chegam a Bajo Chiquito com roupas sujas e molhadas. Após dias na mata, também estão famintos, sem dinheiro e muitas vezes doentes. Ao estado de saúde soma-se o trauma após terem encontrado corpos nas margens do rio, em penhascos, soterrados sob pedras ou apenas deitados, sozinhos ou em grupos, dentro de barracas de camping ou lonas de plástico.

O sistema de alojamento é precário e insuficiente para receber as centenas de pessoas que chegam todos os dias. Não há instalações apropriadas nas quais esses migrantes possam ser acomodados, apenas uma pequena estrutura de metal sem paredes, em que aqueles que trazem suas próprias barracas de camping podem montá-las. O solo é lamacento, cheio de restos de comida e resquícios de fezes.

Por meio da unidade de polícia de fronteira, o governo panamenho fornece diariamente 500 gramas de macarrão, uma lata de sardinhas, sal e biscoitos por família. A comida muitas vezes não é suficiente, e os migrantes precisam de dinheiro para comprar o próprio alimento nos pequenos mercados da aldeia.

Esse fluxo tem impulsionado a economia de Bajo Chiquito. Além do transporte com as canoas, que, com a capacidade máxima, rendem US$ 500 por viagem, há o comércio de alimentos, como carne enlatada e biscoito de polvilho, comprados na cidade e vendidos na vila com grande margem de lucro.

Ali existem também aqueles que se especializaram em extorquir dinheiro dos migrantes, com a ajuda involuntária da polícia. A poucos metros do posto de segurança, indígenas utilizam a internet por satélite que, em tese, deveria ser só para os agentes. Com acesso à conexão, negociam o recebimento de dinheiro via redes de transferência internacional. Do valor mínimo de US$ 200, US$ 40 ficam com intermediários.

Nicolau Auzinho, que abre esta reportagem, deixou Angola em outubro de 2020 com a esposa, duas filhas e um filho para tentar a vida no Brasil. Tentou trabalhar no Brás como feirante e só acumulou prejuízos.

A irmã dele, o cunhado e os sobrinhos haviam chegado alguns anos antes, mas também atravessavam dificuldades. Ela, que já tinha dois filhos, estava grávida de seis meses, e o marido não ganhava o suficiente para pagar as contas mais básicas da família, como aluguel e alimentação.

Sem alternativas no Brasil e no país de origem, decidiram que migrariam para os EUA por terra.

Os quatro adultos e as seis crianças seguiram então de ônibus de São Paulo para a Colômbia. Ao chegarem à cidade costeira de Acandí, contrataram um guia que deveria acompanhá-los até o final da jornada, mas que os abandonou dois dias depois de entrarem na floresta. Após seis dias na mata, com pouca comida, crianças doentes e uma gestante enfraquecida pelo esforço contínuo, a família tentou atravessar um rio num ponto em que a correnteza estava forte depois de dias de chuva intensa.

A irmã do angolano foi a primeira a ser levada pelas águas, com as duas crianças que carregava, uma no ventre e outra nos braços. Apavorada, agarrou-se à cunhada, que abraçou a filha, o cunhado e a sobrinha.

Nicolau ainda conseguiu resgatar a mulher e tentou reanimá-la com massagem pulmonar, respiração boca a boca e orações. Amedrontados pelos gritos do que a filha de 10 anos do imigrante chamou de leões —provavelmente macacos selvagens—, a família deixou o corpo na pedra onde ela havia sido colocada.

Mesmo enfrentando grandes dificuldades, os migrantes venezuelanos José Andrade, 42, e Eluz Andrade, 34, tiveram destino diferente. Obesos e diabéticos, não imaginavam ter os requisitos físicos e mentais para cruzar uma floresta. No quarto dia de travessia, ao tentar passar por um rio, Eluz ficou com o pé preso entre rochas e, ao tentar se libertar, já sufocada pela água, sofreu uma fratura no tornozelo.

Incapaz de andar, com dores e uma infecção que começava a se formar, ela decidiu com o marido enviar o filho, Jesus, junto com migrantes venezuelanos para buscar ajuda. Dias se passaram, a infecção piorou, e José e Eluz ficaram numa área remota por duas semanas, até que senegaleses os ajudaram a construir uma jangada, com a qual chegaram a um ponto onde a polícia panamenha os resgatou de helicóptero.

Relatos como esse são comuns. Abandonada no centro de recepção de San Vicente, Hélia Pinto, 45, nascida na Guiné-Bissau, ficou mais de dez dias perdida antes de receber a ajuda de outros migrantes para atravessar a floresta. No Brasil, deu à luz Iama, que nasceu com problemas de fígado. Com 45 dias de vida, a criança teve de passar por uma cirurgia e, um ano depois, recebeu o órgão de um doador.

Apesar da fragilidade da filha, Hélia, abandonada pelo ex-marido, desempregada e sofrendo com o declínio da economia brasileira, decidiu arriscar e migrar para os Estados Unidos, cruzando a floresta de Darién.

Diabética, teve complicações que obrigaram médicos a amputar dois de seus dedos. A pequena Iama, hoje com cinco anos de idade, foi enviada a um hospital infantil na capital panamenha.

Após dias internada, a guineense foi enviada de volta para o centro de San Vicente. Já a filha permaneceu internada, e com o passar dos meses e as trocas de equipes médicas e de segurança, os documentos das duas se perderam. Assim, a menina passou praticamente a morar no hospital.

Após intervenção da embaixada brasileira, mãe e filha foram reunidas, e elas voltaram ao Brasil.

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