União Europeia atuou para ampliar poder de guarda da Líbia que captura imigrantes

Refugiados relatam rotina de abusos em prisão; leia segunda parte de especial em parceria com The Outlaw Ocean

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ian Urbina
Trípoli (Líbia) | The Outlaw Ocean Project

Em maio desse ano, viajei para Trípoli para investigar o seu sistema de detenção de migrantes. Uma dúzia ou mais de prisões haviam aumentado como resultado dos controversos esforços da União Europeia para, na prática, pagar a países como a Líbia para fazerem o trabalho muitas vezes sujo de fiscalização da imigração em seu lugar. Com o apoio europeu, a Guarda Costeira da Líbia trabalharia para pegar os migrantes enquanto ainda cruzavam o Mediterrâneo, e quem fosse capturado seria então mantido em prisões de todo o país.

A parceria tem causado indignação há anos, e relatórios de abusos e assassinatos pela Guarda Costeira da Líbia e as milícias violentas que normalmente dirigiam as prisões de migrantes se acumulavam. A Europa nunca negou os horrores que aconteciam, mas continuou se comprometendo ao longo dos anos a manter suas relações não apenas com a Líbia, mas com outros países do Norte da África, como Tunísia e Níger.

Migrantes resgatados na costa da Líbia rezam a bordo de navio de resgate da Médicos Sem Fronteiras
Migrantes resgatados na costa da Líbia rezam a bordo de navio de resgate da Médicos Sem Fronteiras - Ed Ou/The Outlaw Ocean Project

No início do ano, ouvi falar da história alarmante de um jovem migrante da Guiné-Bissau que havia fugido de sua casa para a Europa porque sua fazenda estava falindo e ele estava desesperado por dinheiro para alimentar sua família. Seu nome era Aliou Candé, e ele havia sido preso em uma instalação recente, mas cada vez mais notória, na capital da Líbia. A prisão chamava-se Al Mabani, ou "os prédios" em árabe.

Uma vez na Líbia, comecei a reconstruir a história de Candé em direção à Europa, sua captura pela Guarda Costeira da Líbia e seus dias em Al Mabani. Conversei com parentes dele na Guiné-Bissau e na Líbia também. Identifiquei e entrevistei migrantes que haviam sido detidos junto com ele. E busquei detalhar o melhor que pude o papel da Europa em apoiar o combate da Líbia aos migrantes.

Descobri que, às 22h do dia 3 de fevereiro de 2021, Candé e mais de uma centena de pessoas partiram da costa da Líbia a bordo de uma jangada inflável de borracha. Candé havia feito uma longa e árdua viagem da Guiné-Bissau ao Níger, Marrocos e Argélia, esquivando-se de criminosos, tentando providenciar transporte para a Europa e, finalmente, chegando à Líbia.

Agora, a Líbia se afastava, e a noite estava nublada e fria. Alguns dos migrantes, entusiasmados com a partida, começaram a cantar. O barco deixou as águas da Líbia e chegou ao alto mar por volta da meia-noite. A ilha italiana de Lampedusa, que era seu destino planejado, ficava a apenas algumas centenas de quilômetros de distância, e Candé se sentia esperançoso. Montado na lateral da jangada, ele disse com confiança aos outros a bordo que não apenas tinha certeza de que chegaria à Europa, mas que estava pensando em trazer sua esposa e filhos para se juntar a ele.

Um elemento-chave da parceria entre Europa e Líbia para policiar migrantes tem sido o apoio à Guarda Costeira do país. A União Europeia gastou dezenas de milhões de dólares para transformar a Guarda Costeira em uma formidável força por procuração.

Em 2018, o governo italiano, com a aprovação da UE, ajudou a Guarda Costeira a obter a aprovação da ONU para estender sua jurisdição a quase 160 quilômetros da costa da Líbia —em águas internacionais e a meio caminho da costa italiana. A Itália e a UE forneceram seis lanchas, 30 Toyota Land Cruisers, rádios, telefones via satélite, botes infláveis e 500 uniformes.

Talvez a ajuda mais valiosa venha da agência Frontex, fundada em 2004 para proteger a fronteira da Europa com a Rússia. Em 2016, a Frontex começou a liderar um "esforço sistemático para capturar" migrantes que cruzam o mar. A agência mantém uma vigilância quase constante do Mediterrâneo por meio de drones e aeronaves fretadas. Quando detecta uma embarcação de migrantes, a Frontex envia fotos e informações da localização para parceiros na região, incluindo agências governamentais locais.

Em uma troca por WhatsApp no começo do ano, por exemplo, um oficial da Frontex escreveu para alguém que se identificava como um "Capitão da Guarda Costeira da Líbia", dizendo: "Bom dia, senhor —temos um barco à deriva em [coordenadas]. Pessoas despejando água. Por favor, confirme esta mensagem".

Especialistas jurídicos argumentam que essas ações violam as leis internacionais contra a repressão ou o retorno de migrantes a locais que violam os direitos humanos.

Os funcionários da Frontex responderam a um pedido de abertura de registros, que indicam que, de 1º a 5 de fevereiro, época em que Candé esteve no mar, a agência trocou trinta e sete emails com a Guarda Costeira (a Frontex recusou-se a divulgar o conteúdo dos emails, dizendo que isso representaria um risco para a "segurança do migrante").

Quando tem as coordenadas, a Guarda Costeira da Líbia se apressa em interceptar os barcos e capturar as pessoas a bordo, às vezes disparando armas contra as jangadas e botes, às vezes fazendo com que o barco vire. Em uma ocasião, no início deste ano, um navio da Guarda Costeira atirou e afundou um barco com migrantes e cinco pessoas morreram afogadas, enquanto os comandantes filmavam com seus telefones celulares.

Naquela noite de fevereiro, Candé e os outros a bordo conseguiram chegar a mais de setenta milhas da costa da Líbia, já em águas internacionais, mas ainda dentro da zona oficial de busca e resgate da Guarda Costeira da Líbia que a Europa havia ajudado a criar. Por volta das 17h do dia 4 de fevereiro, os migrantes notaram um avião acima deles, que circulou por 15 minutos e depois voou para longe.

Dados da ADS-B Exchange, entidade que acompanha o tráfego da aviação, mostram que se tratava de um Eagle1, um avião de vigilância Beech King Air 350 branco alugado pela Frontex (a agência não quis comentar sobre seu papel na captura). Cerca de três horas depois, um barco apareceu no horizonte. "Quanto mais perto chegava, mais claro ficava —e vimos as linhas pretas e verdes da bandeira", disse-me Mohamed David Soumahoro, que fez amizade com Candé no barco. "Todo mundo começou a chorar e segurar a cabeça, dizendo: ‘Merda, é a Líbia’."

O barco, um Vittoria P350 feito de aço, fibra de vidro e kevlar, foi uma das embarcações entregues à Guarda Costeira da Líbia pela UE. A Guarda Costeira bateu no bote três vezes e ordenou que os migrantes subissem a bordo. "Movam-se!", os oficiais gritaram. Um deles atingiu vários migrantes com a coronha do rifle; outro os chicoteou com uma corda. Os migrantes foram levados de volta à terra e colocados em ônibus e caminhões. Candé não fazia ideia, mas ele estava sendo levado para uma das piores prisões da Líbia: Al Mabani.

Quase nenhum jornalista ocidental tem permissão para entrar na Líbia, mas eu havia conseguido vistos para mim e outras três pessoas da minha equipe. Quando chegamos em Trípoli, fomos colocados em um hotel no centro da cidade e tínhamos uma modesta equipe de segurança. Eu tinha a impressão de que estávamos sendo vigiados pelas autoridades.

Mas eu estava determinado a investigar a história de Candé e da prisão em que ele foi detido. Conseguimos lançar um drone sobre Al Mabani e capturamos uma cena de migrantes agrupados em um pátio, com as cabeças voltadas para o chão, apanhando se eles olhassem para cima. Parecia que tinham acabado de ser alimentados - uma rotina sombria em que tigelas de comida eram colocadas no pátio e homens em grupos de cinco pegavam o que podiam. Também identificamos e contatamos migrantes que estiveram com Candé, mas escaparam de Al Mabani.

Vários dias depois de chegar à Líbia, eu viajei para Gargaresh, uma comunidade de migrantes, para falar com ex-detentos. Soumahoro me encontrou na estrada principal e me levou rapidamente para uma sala sem janelas ocupada por dois outros migrantes. Durante uma refeição de chana masala, me contou sobre seu tempo na prisão.

Migrantes em Al Mabani eram espancados por cochichar, falar em sua língua nativa ou rir. O pior acontecia na chamada "sala de isolamento", um posto de gasolina abandonado atrás da cela feminina com uma placa da Shell pendurada na frente. A "sala" não tinha banheiro, então os presos tinham que defecar em um canto; o cheiro era tão ruim que os guardas usavam máscaras quando os visitavam.

Os agentes chegaram a amarrar as mãos de um detido a uma corda suspensa em uma viga de aço do teto antes de espancá-lo. "Não é tão ruim ver um amigo ou um homem gritando enquanto é torturado", diz Soumahoro. "Mas ver um homem de 1,80 m espancando uma mulher com um chicote..." Em março, Soumahoro organizou uma greve de fome para protestar contra a violência dos guardas e foi levado para a sala de isolamento, onde foi amarrado de cabeça para baixo e espancado várias vezes. "Eles penduram você como uma peça de roupa", afirma.

Vários ex-detentos com quem falei em Trípoli disseram ter testemunhado abusos sexuais. Adjara Keita, uma migrante de 36 anos da Costa do Marfim, mantida em Al Mabani por dois meses, me contou que as mulheres eram frequentemente retiradas de suas celas para serem estupradas pelos guardas. "Elas voltavam em lágrimas." Um dia, depois que duas mulheres escaparam de Al Mabani, os guardas, em um ato aparentemente aleatório de retribuição, agarraram Keita, levaram-na para um escritório próximo e a espancaram.

Os guardas também empregavam alguns detidos como colaboradores, uma tática que os mantinha divididos. Mohamed Soumah, um jovem de 23 anos da República da Guiné, também chamada Guiné-Conacri, havia se oferecido para ajudar nas tarefas diárias e logo foi pressionado para dar informações: quais migrantes se odiavam? Quais eram os agitadores? Quando migrantes pagavam o resgate para serem liberados, Soumah conduzia as negociações.

Como recompensa, ele podia dormir com os cozinheiros que moravam do outro lado da rua do complexo. A certa altura, como um presente por sua lealdade, os guardas permitiram que ele escolhesse vários migrantes para serem libertados. Ele podia até deixar o complexo, embora nunca tenha ido longe. "Eu sabia que eles iriam me encontrar e me espancar se eu tentasse ir embora", Soumah me disse.

Uma organização de ajuda internacional visitava a prisão duas vezes por semana e descobriu que os detidos estavam cobertos de hematomas e cortes, evitavam o contato visual e recuavam com ruídos altos. Às vezes, os migrantes entregavam pequenas notas de desespero escritas nas costas de panfletos rasgados da Organização Mundial da Saúde para a equipe. Muitos contavam à equipe humanitária que se sentiam "desaparecidos" e pediam que alguém dissesse a suas famílias que eles estavam vivos.

Durante uma visita, a equipe não pôde entrar na cela de Candé porque ela estava muito lotada —estimava-se que havia três detidos por metro quadrado. Em vez disso, eles se encontraram com os migrantes no pátio. A superlotação era intensa e a tuberculose e a Covid-19 eram comuns entre os detidos. Durante outra visita, a equipe ouviu falar de espancamentos que haviam ocorrido na noite anterior e catalogaram fraturas, cortes, escoriações e traumas contundentes; uma criança ficou tão gravemente ferida que não conseguia andar.

No meio da minha refeição com Soumahoro, meu telefone tocou e um policial gritou comigo: "Você não tem permissão para falar com migrantes. Você não pode estar em Gargaresh". Ele me disse que se eu não fosse embora imediatamente, seria preso. Quando voltei para o meu carro, o policial, que estava parado ao lado dele, afirmou que se eu falasse com mais algum migrante eu seria expulso do país. Depois disso, minha equipe e eu não podíamos nos aventurar muito longe.

Este é o segundo artigo de uma série produzida por The Outlaw Ocean Project, cujo diretor é Ian Urbina, em parceria com a Folha. O especial examina a parceria da União Europeia com a Líbia na captura e detenção de migrantes que tentam chegar à Europa. O Outlaw Ocean Project é uma organização jornalística sem fins lucrativos com base em Washington cujo foco são problemas ambientais e de direitos humanos que ocorrem em alto-mar.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.