União Europeia cria sistema nas sombras para impedir migrantes de chegar à Europa

Série em 4 capítulos narra trajetória de migrante guineense detido por milícia na Líbia ao tentar cruzar Mediterrâneo

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Ian Urbina

Diretor do The Outlaw Ocean Project, organização jornalística sem fins lucrativos com base em Washington cujo foco são problemas ambientais e de direitos humanos que ocorrem em alto-mar.

Trípoli (Líbia) | The Outlaw Ocean Project

Uma coleção de armazéns improvisados fica ao longo da rodovia em Ghout al-Shaal, bairro desgastado de oficinas e ferros-velhos no oeste de Trípoli, capital da Líbia. Antes um depósito de cimento e concreto, o local foi reaberto em janeiro deste ano, suas paredes ampliadas e cobertas com arame farpado.

Homens em uniformes camuflados em preto e azul, com rifles Kalashnikov, montam guarda ao redor de um contêiner que se passa por escritório. No portão, uma placa: "Departamento de Combate à Migração Ilegal". A instalação é uma prisão secreta para migrantes. Seu nome, em árabe, é Al Mabani (os prédios).

Às 3h de 5 de fevereiro de 2021, Aliou Candé, um migrante da Guiné-Bissau de 28 anos, robusto e tímido, chegou à prisão. Ele havia saído de casa um ano e meio antes porque sua fazenda estava falindo e havia decidido se juntar a dois irmãos na Europa. Mas enquanto tentava cruzar o mar Mediterrâneo num bote de borracha com outros 130 migrantes, a Guarda Costeira da Líbia os interceptou e os levou para Al Mabani.

Eles foram empurrados para dentro da cela 4, na qual cerca de 200 migrantes estavam detidos. Quase não havia lugar para se sentar entre os corpos amontoados, e os que estavam no chão se arrastavam para os lados para que não fossem pisoteados. Luzes fluorescentes no alto ficavam acesas a noite toda. Uma pequena grade na porta, com cerca de 30 centímetros de largura, era a única fonte de luz natural.

Pássaros se aninhavam nas vigas, suas penas e fezes caindo lá de cima. Candé se amontoou num canto distante e começou a entrar em pânico. "O que deveríamos fazer?", perguntou a um companheiro de cela.

Nos últimos seis anos, a União Europeia, cansada dos custos financeiros e políticos de receber migrantes da África Subsaariana, criou um sistema nas sombras que os barra antes que cheguem à Europa. Ela tem equipado e treinado a Guarda Costeira da Líbia, uma organização paramilitar ligada às milícias do país, para patrulhar o Mediterrâneo, sabotando operações de resgate humanitário e capturando migrantes.

Os migrantes são então detidos indefinidamente em uma rede de prisões com fins lucrativos administrada pelas milícias. Em setembro, cerca de 6.000 migrantes foram presos, a maioria dos quais em Al Mabani.

Agências humanitárias internacionais têm documentado uma série de abusos: detentos torturados com choques elétricos, crianças estupradas por guardas, famílias extorquidas para pagar resgates, homens e mulheres vendidos para realizar trabalhos forçados. "A União Europeia fez algo que considerou cuidadosamente e planejou por muitos anos", diz Salah Marghani, ministro da Justiça da Líbia de 2012 a 2014. "Criar um inferno na Líbia, com a ideia de dissuadir as pessoas de irem para a Europa."

Candé cresceu em uma fazenda perto da aldeia de Sintchan Demba Gaira. Lá não há sinal de celular, estradas pavimentadas, encanamento ou eletricidade. Ele morava numa casa de barro, pintada de amarelo e azul, com sua esposa, Hava, e seus dois filhos pequenos. Ouvia músicos estrangeiros e seguia os clubes de futebol europeus; falava inglês e francês e aprendia português por conta própria, com a esperança de um dia morar em Portugal. Jacaria, um dos três irmãos de Candé, me disse: "Aliou era um menino adorável —nunca se metia em problemas. Ele era um trabalhador esforçado. As pessoas o respeitavam".

A fazenda de Candé produzia mandioca, manga e caju —uma safra que representa 90% das exportações do país. Mas o ambiente começou a mudar, provavelmente como resultado da crise climática.

Vista aérea da prisão secreta de migrantes na Líbia, chamada Al Mabani
Vista aérea da prisão secreta de migrantes na Líbia, chamada Al Mabani - Pierre Kattar/The Outlaw Ocean Project - 18.mai.21

"Não sentimos mais frio durante a estação fria, e o calor vem mais cedo do que deveria", afirma Jacaria. As fortes chuvas deixaram a fazenda acessível apenas por canoa na maior parte do ano; os períodos de seca pareciam durar mais do que a geração anterior. Candé tinha quatro vacas magras que produziam pouco leite. Havia cada vez mais mosquitos, que espalham doenças. Quando um dos filhos de Candé contraiu malária, a viagem para o hospital demorou um dia, e ele quase morreu.

Muçulmano devoto, Candé temia estar falhando diante de Deus em sustentar sua família. "Ele se sentia culpado e com inveja", contou-me Bobo, outro irmão de Candé. Jacaria emigrou para a Espanha, e Denbas, o terceiro irmão, para a Itália. Ambos enviavam dinheiro e fotografias de restaurantes chiques. O pai de Candé, Samba, me disse: "Quem vai para o exterior traz fortuna para casa".

Hava estava grávida de oito meses, mas a família de Candé o encorajou a ir para a Europa, prometendo cuidar de seus filhos. "Todas as pessoas da geração dele foram para o exterior e tiveram sucesso", contou sua mãe, Aminatta. "Então, por que não ele?" Na manhã de 13 de setembro de 2019, Candé partiu para a Europa com um Alcorão, duas calças, uma camiseta, um diário de couro e 600 euros. "Não sei quanto tempo isso vai demorar", afirmou à esposa naquela manhã. "Mas eu te amo e vou voltar."

Ninguém no mundo além de quem atua em Al Mabani sabia que Candé havia sido capturado. Ele não havia sido acusado de um crime nem autorizado a falar com um advogado e não recebeu nenhuma indicação de quanto tempo ficaria detido. Nos primeiros dias de sua detenção, manteve-se quase sempre reservado, submetendo-se às rotinas sombrias do lugar.

A prisão é controlada por uma milícia que se proclama Agência de Segurança Pública, e seus atiradores patrulhavam os corredores. Cerca de 1.500 migrantes eram mantidos lá, em oito celas divididas por gênero. Havia apenas um banheiro para cada grupo de cem pessoas, e Candé muitas vezes precisava urinar em uma garrafa d'água ou defecar nos chuveiros.

Os migrantes dormiam em esteiras no chão. Como não havia o suficiente para todos, eles se revezavam em pares: um durante o dia, o outro à noite. Os presos brigavam para ver quem dormiria no chuveiro, que tinha uma ventilação melhor. Duas vezes por dia, eles tinham que marchar em fila única para o pátio e eram proibidos de olhar para o céu ou falar. Os guardas, como tratadores de zoológico, colocavam tigelas de comida no chão, e os migrantes se reuniam em círculos para comer.

Os guardas espancavam os presos que desobedeciam às ordens com o que quer que tivessem à mão: uma pá, uma mangueira, um cabo, um galho de árvore. "Eles batiam em qualquer um sem nenhum motivo", conta Tokam Martin Luther, um camaronês mais velho que dormia na esteira ao lado de Candé.

Os detidos especulavam que os guardas jogavam os corpos dos mortos atrás de uma das paredes externas do complexo, perto de uma pilha de tijolos e restos de reboco. Nas paredes das celas, havia notas rabiscadas de determinação: "Um soldado nunca recua" e "com os olhos fechados, avançamos".

Os guardas ofereciam aos migrantes sua liberdade por uma taxa de 2.500 dinares líbios —cerca de R$ 3.000. Durante as refeições, os guardas circulavam com um telefone celular, permitindo que os detidos ligassem para os pais dos migrantes que podiam pagar a taxa. Mas a família de Candé não podia pagar tanto em um resgate. Luther me disse: "Se você não tem ninguém para ligar, você fica sentado".

Três semanas depois que Candé chegou a Al Mabani, um grupo de detidos elaborou um plano de fuga.

Moussa Karouma, um migrante da Costa do Marfim, e vários outros defecaram em uma lixeira e a deixaram em sua cela por dois dias, até que o fedor se tornou insuportável. "Foi a minha primeira vez na prisão", Karouma me contou. "Eu estava apavorado." Quando os guardas abriram as portas das celas, 19 migrantes saíram. Eles escalaram o telhado de um banheiro, pularam sobre o muro de cerca de cinco metros e desapareceram em um labirinto de becos perto da prisão.

Para os que ficaram, as consequências foram sangrentas. Os guardas chamaram reforços, que atiraram nas celas e espancaram os prisioneiros. "Havia um cara na minha ala, em quem bateram com uma arma na cabeça, até que ele desmaiou e começou a tremer", disse um migrante mais tarde à ONG Anistia Internacional. "Eles não chamaram uma ambulância para buscá-lo naquela noite... Ele ainda respirava, mas não conseguia falar... Eu não sei o que aconteceu com ele... Eu não sei o que ele tinha feito."

Nas semanas que se seguiram, Candé tentou evitar problemas e se agarrou a um boato esperançoso: os guardas estariam planejando libertar os migrantes da sua cela em honra ao período do Ramadã, dali a dois meses. "O senhor é milagroso", Luther escreveu em um diário que mantinha. "Que sua graça continue protegendo todos os migrantes ao redor do mundo, especialmente os que estão na Líbia."

Este é o primeiro artigo de uma série produzida por The Outlaw Ocean Project, cujo diretor é Ian Urbina, em parceria com a Folha. O especial examina a parceria da União Europeia com a Líbia na captura e detenção de migrantes que tentam chegar à Europa. O Outlaw Ocean Project é uma organização jornalística sem fins lucrativos com base em Washington cujo foco são problemas ambientais e de direitos humanos que ocorrem em alto-mar.

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