Descrição de chapéu oriente médio

Apresentação de samba na Arábia Saudita expõe contradições de abertura da monarquia

Príncipe pede investigação após dançarinas integrarem festival de inverno em cidade conservadora

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Washington

A cidade de Jazan, no sudoeste da Arábia Saudita, é conhecida por seu conservadorismo —isso em um dos países mais conservadores do mundo. Não espanta, assim, que a apresentação recente de um grupo de dançarinas, em um arremedo de samba, tenha causado furor e desencadeado uma investigação local.

As passistas foram às ruas no início deste mês, como parte da programação de um festival de inverno. Cobertas de plumas, como se estivessem num sambódromo brasileiro, passaram pelas ruas saudando a população. Balançando os ombros, batiam as mãos na palma das crianças que, hipnotizadas, seguiam seus passos. Mostravam barriga e pernas, em um país onde as mulheres costumam cobrir todo o corpo.

As imagens foram parar nas redes sociais, indignando alguns setores da população. O príncipe Mohammed bin Nasser, que governa a região, pediu a abertura de uma investigação oficial.

O episódio evidencia as contradições do conturbado processo de abertura na Arábia Saudita, pelo qual o regime tem tentado projetar uma imagem de moderação —o que incomoda parte da população.

O discurso de abertura, ademais, não significa o fim da repressão. Um exemplo dessas incongruências é o fato de que o festival de inverno foi promovido pelo mesmo príncipe que, poucos dias depois, diante de protestos, decidiu deixar o samba morrer.

Como a Arábia Saudita é um dos países mais fechados do mundo, há pouca informação sobre o episódio. As autoridades de Jazan não responderam aos pedidos de esclarecimento da reportagem. Sauditas hesitam em falar com a imprensa, para evitar represálias —silêncio que vale inclusive para quem mora no exterior, onde o regime consegue alcançar. É icônico o caso do jornalista Jamal Khashoggi, morto e esquartejado dentro do consulado saudita em Istambul em 2018.

Ao que tudo indica, as dançarinas de Jazan não eram brasileiras. Ao menos não se registraram na representação diplomática do Brasil nem pediram assistência consular. O governo brasileiro tampouco estava envolvido com a organização da apresentação musical. A imprensa local apenas descreveu as mulheres como "estrangeiras", dizendo que dançavam samba.

A política de abertura saudita é um plano de sobrevivência. Nas últimas décadas, a monarquia se financiou com a exportação de petróleo —o país tem uma das maiores reservas conhecidas e é um de seus principais exportadores. O mundo, porém, tem investido em combustíveis alternativos, e o futuro sem o ouro negro assusta a monarquia.

Nesse contexto, o regime tem tentado melhorar a imagem no exterior. Quer, entre outras coisas, atrair estrangeiros —tanto que recentemente passou a facilitar vistos de turismo. Uma das apostas é reposicionar a Arábia Saudita como um polo cultural relevante, algo que jamais foi. A figura por trás desses planos é Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro e líder de fato do país.

Um dos símbolos dessa campanha é a inauguração recente de centenas de salas de cinema, em um país que as proibiu por 35 anos. Em dezembro passado, em um festival de música que teve a participação de DJs estrangeiros, milhares de homens e mulheres dançaram juntos por dias no deserto —cena impensável até pouco tempo atrás. A Arábia Saudita também esvaziou a instituição da polícia religiosa, que zanzava pelas ruas do país perseguindo quem quer que desviasse de suas normas ultraconservadoras.

Essas mudanças agradam, em especial, à população jovem do país, hoje a maioria. Dos 35 milhões de habitantes da Arábia Saudita, cerca de dois terços têm menos de 35 anos.

A abertura, porém, se dá aos trancos. Se com uma mão o regime permite avanços, com a outra ele ainda pune duramente. O exemplo icônico dessa discordância é a decisão de permitir que as mulheres dirijam no país, uma das reivindicações sociais históricas por ali. Ao mesmo tempo que celebrava a mudança, em 2018, a monarquia mandou prender quem havia batalhado por décadas pelo avanço. A mensagem era de que o país poderia até promover mudanças, desde que estivesse no controle do quê, do quando e do onde.

Ali Alahmed, ativista saudita radicado nos Estados Unidos, sugere que o episódio do samba é um exemplo do quão pouco o regime pensou antes de planejar e promover o festival de Jazan. "Eles não antecipavam esse tipo de reação negativa. As mulheres estavam dançando nas ruas de uma região conservadora. Se tivessem pensado direito, não teriam feito."

Apresentação de sambistas em festival de inverno no começo de 2022 na cidade de Jazan, na Arábia Saudita, causa furor em conservadores e leva a investigação. Foto: Reprodução
Apresentação de sambistas em festival de inverno no começo de 2022 na cidade de Jazan, na Arábia Saudita, causa furor em conservadores e leva a investigação - Reprodução

Ele aponta, também, que a política de abertura é pontual e não toca em questões fundamentais. O regime ainda proíbe, por exemplo, as celebrações do aniversário do profeta Maomé, porque sua interpretação conservadora do islã desencoraja qualquer coisa que possa parecer idolatria. O governo também dificulta as cerimônias religiosas da vertente xiita, minoritária no país.

"Acham que reformar o país significa abrir um McDonald's", diz. "Mas não permitem que as pessoas tenham os seus direitos."

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