Chefe da Marinha alemã renuncia após deflagrar crise com Ucrânia por defender Putin

Reino Unido acusa presidente russo de articular para ter líder alinhado a ele em Kiev no lugar do presidente Zelenski

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Berlim | Reuters

O chefe da Marinha alemã, vice-almirante Kay-Achim Schönbach, pediu demissão neste sábado (22) após declarações suas sobre a crise envolvendo a Rússia e a Ucrânia deflagrarem uma tensão diplomática entre Berlim e Kiev.

O militar havia defendido Vladimir Putin, dizendo que o presidente russo merece respeito e só quer ser tratado de igual para igual pelo Ocidente. Falando em inglês em um debate realizado de forma virtual por um think tank indiano, ele ainda afirmou que a península da Crimeia, anexada por Moscou após um conflito em 2014, "nunca voltará" ao controle ucraniano.

A ministra da Defesa alemã, Christine Lambrecht, cumprimenta o vice-almirante Kay-Achim Schönbach, então chefe da Marinha - Bernd Wüstneck - 17.dez.21/AFP

A fala repercutiu primeiro na imprensa local, para depois abrir um atrito com a Ucrânia e gerar reações também na própria Alemanha. A chancelaria de Kiev, por exemplo, pediu que o governo do primeiro-ministro Olaf Scholz repudiasse as declarações. "A Ucrânia é grata pelo suporte dado desde 2014, bem como pelos esforços diplomáticos para solucionar o conflito armado. Mas a afirmação é decepcionante e vai de encontro a esse apoio", escreveu o ministro Dmitro Kuleba no Twitter.

A Defesa alemã, então, rapidamente emitiu uma nota para esclarecer que a fala de Schönbach não refletia a posição da pasta ou do governo —e que caberia ao militar se explicar a seus superiores. O vice-almirante depois tuitou que aquelas eram opiniões pessoais e pediu desculpas pelo que chamou de comentários impulsivos. Poucas horas depois, apresentou sua demissão.

"O que Putin realmente quer é respeito. E, por Deus, respeitar alguém não custa nada. É fácil dar a ele o respeito que ele pede —e provavelmente merece", disse Schönbach no debate transmitido no YouTube. "A península da Crimeia já era, não volta nunca mais [ao controle ucraniano]. Isso é um fato", completou, em uma posição que não encontra eco na interpretação do Ocidente.

Esse mal-estar se dá em um momento especialmente tenso da relação entre Rússia e Ucrânia, e após uma semana em que a Alemanha participou ativamente de esforços diplomáticos para tentar apaziguar os ânimos.

A raiz do conflito atual foi o deslocamento, por Putin, de ao menos 100 mil soldados para uma região próxima à fronteira ucraniana. A ação foi vista pelos Estados Unidos e por outras potências ocidentais como indicativo de uma possível invasão —semelhante à que se deu em 2014, quando a derrubada do governo pró-Kremlin em Kiev levou Moscou a anexar a Crimeia e a apoiar a guerra civil de separatistas étnicos na região conhecida como Donbass.

A Rússia, por sua vez, tem mantido sua posição de que não há intenção de atacar o vizinho, ao mesmo tempo que afirma que poderia adotar ações militares caso o Ocidente não atenda às suas demandas —a saber, a garantia de que antigas repúblicas soviéticas como Ucrânia e Moldova não integrarão a Otan e a retirada de tropas da aliança militar dos países ex-comunistas, freando a presença nas cercanias.

A Alemanha é especial interessada na situação por causa do Nord Stream 2. O gasoduto, que liga o país à Rússia pelo mar Báltico e ficou pronto recentemente, teve sua operação suspensa e ainda não iniciada, com a possibilidade de ser autorizada apenas em junho. Hoje, 40% do gás natural usado na Europa vem de Moscou, e a obra permitirá a Putin retirar boa parte do trânsito do produto de linhas que passam pela Ucrânia.

O gasoduto foi uma das cartas colocadas na mesa por autoridades alemãs em conversas diplomáticas nesta semana, nas quais se colocaram ao lado de Kiev. Tanto a ministra das Relações Exteriores Annalena Baerbock (em encontro com o chanceler russo, Serguei Lavrov) quanto Scholz (que se reuniu com o secretário-geral da Otan) disseram que Berlim sabe que o custo de defender a Ucrânia no caso de uma invasão russa será grande —e todos estão dispostos a pagá-lo, via sanções, por exemplo.

Apesar disso, há pontos de fricção entre alemães e ucranianos. Neste sábado mesmo, antes do mal-estar deflagrado por Schönbach, o chanceler Dmitro Kuleba havia reclamado no Twitter de uma negativa de Berlim para o envio de armas de defesa a Kiev, ressaltando que "a unidade do Ocidente em relação à Rússia é mais importante do que nunca".

O Reino Unido, por exemplo, anunciou nesta semana ter iniciado o fornecimento de armamentos antitanque aos ucranianos.

Neste sábado, aliás, citando a inteligência britânica, a secretária de Relações Exteriores Liz Truss abriu nova frente de acusações contra Moscou, afirmando que Putin tem feito articulações em prol de Ievguêni Muraiev, pré-candidato presidencial, para ter um líder ucraniano favorável a ele —Kiev fará eleições em 2024.

Os planos, segundo ela, incluiriam contatos com ao menos outros quatro políticos do país vizinho para viabilizar uma incursão. "Isso não é lógico, estou banido da Rússia, a empresa do meu pai teve dinheiro confiscado", disse o político ao jornal Observer.

O comunicado da chancelaria britânica não detalha que medidas viabilizariam a queda do atual presidente, Volodimir Zelenski, e a ascensão de Muraiev, mas autoridades americanas já classificaram o possível movimento como preocupante. Na Rússia, o relatório da inteligência britânica foi classificado como "desinformação".

Truss deve ir a Moscou para se reunir com o chanceler russo em fevereiro.

Os esforços diplomáticos nos últimos dias envolveram também os Estados Unidos, com o secretário de Estado Antony Blinken reunindo-se com Lavrov em Genebra, na Suíça, na sexta. Após o encontro, o chanceler russo repetiu ataques à Otan, negou as acusações de que a Rússia invadirá a Ucrânia e disse que a cúpula não seria o fim das negociações.

O americano também reforçou posições que já eram conhecidas e afirmou que a Rússia vai enfrentar uma "resposta rápida e severa" se invadir a Ucrânia. De grande novidade, Blinken concordou com o pedido de enviar respostas formais, por escrito, às demandas do Kremlin.

Em todas as oportunidades anteriores, como num encontro entre representantes do clube militar e do governo russo, as exigências foram negadas, e o secretário-geral do órgão, o norueguês Jens Stoltenberg, embora tenha celebrado a existência da reunião, disse haver "um risco real de conflito armado na Europa".

Lavrov não descartou uma nova cúpula entre os presidentes Joe Biden e Vladimir Putin, como ocorreu justamente em Genebra no começo do mandato do democrata. De acordo com a agência estatal russa de notícias RIA, ambos os países podem realizar um novo encontro no próximo mês. Blinken também disse ser importante continuar o diálogo pelas vias diplomáticas.

Apesar de tudo, movimentos recentes da Rússia no front sugerem que a tensão está longe de se apagar. Na quinta, o Kremlin anunciou a realização de exercícios navais com o Irã e a China, dois dos maiores adversários dos EUA hoje e, antes, deslocou tropas e equipamentos militares a Belarus para a realização de exercícios conjuntos no mês que vem.

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