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Putin fala como czar na crise no Cazaquistão e se cacifa contra o Ocidente

Presidente ganha musculatura para negociação na Ucrânia e ataca 'revoluções coloridas'

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São Paulo

Se a origem da escalada que levou protestos contra preços a se tornarem uma revolta no Cazaquistão ainda é nebulosa, Vladimir Putin deixou cristalina a vitória política que colheu até aqui no episódio.

Bem a calhar, para ele, dado que a semana está coalhada de reuniões para debater o ultimato que o russo fez ao Ocidente ao colocar tropas próximas da Ucrânia e apresentar seus termos para a paz na região.

Soldado russo em blindado à frente de cargueiro Il-76 chega ao aeroporto de Almati, no Cazaquistão
Soldado russo em blindado à frente de cargueiro Il-76 chega ao aeroporto de Almati, no Cazaquistão - Ministério da Defesa Russo - 9.jan.22/AFP

O presidente russo, após intervir com tropas de sua versão em miniatura da Otan, a OTSC (Organização do Tratado de Segurança Coletiva), viu a situação se estabilizar no vizinho mais importante na Ásia Central. E falou como um czar, ou secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, nesta segunda (10).

"Essas não foram as primeiras nem as últimas tentativas de interferência em assuntos internos de nossos Estados. As medidas tomadas pela OTSC mostraram claramente que não vamos permitir que a situação seja abalada em casa e não permitiremos que as chamadas revoluções coloridas ocorram", disse o russo aos líderes dos outros cinco membros da aliança militar.

É a vocalização de tudo o que Putin tem feito nos últimos anos para garantir a dita profundidade estratégica às suas fronteiras —cercar-se de aliados absorvidos politicamente, como Belarus e agora Cazaquistão, ou minar vizinhos que busquem entrar em clubes ocidentais, como Ucrânia e Geórgia.

Ele dificilmente seria mais claro. Ressuscitou o conceito de revolução colorida, apelido dos movimentos de afastamento de Moscou nesses dois últimos países ex-soviéticos nos anos 2000. Vendidos no Ocidente como atos pró-democracia, são vistos na elite russa como golpes desestabilizadores.

Como resultante, nem Kiev nem Tbilisi conseguem aceder à Otan ou à União Europeia, como desejariam, porque têm parte de seus territórios ocupados por separatistas pró-Rússia —no caso ucraniano, com o ônus extra da perda da Crimeia em 2014.

A fala de Putin é um marco nessa história. Reorganizada em 2002, a OTSC nunca teve utilidade prática. Na intervenção na crise no Cazaquistão, uma operação basicamente russa, mas com presença dos aliados Belarus e Armênia para garantir um caráter supranacional, colocou quase 3.000 homens em dois dias no país.

O presidente cazaque, Kassim-Jomart Tokaiev, ainda tentou dourar a pílula, dizendo que as tropas estrangeiras estão apenas garantindo ativos estratégicos do país, grande produtor de hidrocarbonetos e líder mundial em urânio, para não falar na mais discutível mineração virtual de bitcoins.

Foi uma imposição do Kremlin, que não quis ver forças russas reprimindo cidadãos do país vizinho diretamente. Não só por sua imagem lá, mas também porque a opinião pública russa tolera mal baixas em conflitos. Assim, a intervenção sai barata politicamente, como ocorreu na Síria, onde o serviço mais sujo coube a mercenários.

Até aqui, morreram 164 pessoas na confusão, só 16 delas da polícia. Há, segundo o autocrata que conduz o país desde 2019, 1.300 feridos e 8.000 presos.

Nesta segunda, ele também declarou a crise encerrada. "A ordem constitucional voltou", afirmou, em pronunciamento na televisão, afirmando contudo que a "busca pelos terroristas" segue no país.

Putin, falando de forma imperial, fez um resumo crível do que aconteceu na semana passada, quando atos contrários à alta do preço do gás liquefeito de petróleo usado em carros descambaram para tiroteios e ataques a prédios públicos em todo o país, com especial efeito na maior cidade, Almati, que era a capital nos tempos soviéticos e se chamava Alma-Ata.

"A ameaça ao Estado cazaque emergiu não dos protestos espontâneos e marchas devido ao preço do combustível. Foi por causa de forças internas e externas destrutivas que levaram vantagem da situação", afirmou o russo.

É bastante possível, faltando aí os nomes aos bois. O ex-chefe da inteligência e outros foram presos, dando força à perna interna da crise —agora, se foi uma ação preventiva de Tokaiev para asseverar poder ou um golpe contra ele, é uma incógnita.

Da mesma forma, a interferência estrangeira não fica clara. Para adoradores de teorias da conspiração, o fato de que Putin conseguiu o que queria, emergir soberano da crise, só estimula a ideia de que, se houve ação externa, foi para ajudar o russo.

Como isso é intangível, resta a realidade: o presidente russo viu desembarcar sua delegação para as duras conversas com EUA e Otan acerca da crise na Ucrânia em Genebra fortalecido pelos eventos no seu flanco sudeste.

Isso se exemplifica com o recibo passado pelos EUA no fim de semana, quando o secretário de Estado, Antony Blinken, queixou-se da conveniência das tropas da OTSC no Cazaquistão.

É tudo o que Putin, que passou 2021 sendo chamado de opressor e assassino pelo governo de Joe Biden, poderia querer ouvir. Ele quer ser temido como líder de potência.

Naturalmente, esse quadro pode sofrer alterações caso a situação volte a desandar na Ásia Central. Por ora, depois de intervir em favor de aliados na Belarus, no Quirguistão e no Cazaquistão, Putin enverga o manto de czar redivivo nas negociações.

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