Entenda como age uma unidade policial talibã no Afeganistão

Fundamentalistas poderão garantir a paz em país multiétnico arrasado por 40 anos de violência?

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Safiullah Padshah Thomas Gibbons Neff Victor J. Blue
Cabul | The New York Times

Um jovem combatente talibã com um par de algemas penduradas do dedo observava com atenção o fluxo de carros que se aproximava dele, parado diante de uma série de barricadas de aço.

As orações de sexta-feira começariam logo mais no santuário e mesquita de Sakhi Shah-e Mardan, um local sagrado xiita no centro de Cabul, que ele estava protegendo.

Houve dois bombardeios de mesquitas xiitas no Afeganistão pelo grupo Estado Islâmico (EI) nos últimos meses, matando dezenas de pessoas, e esse combatente talibã de 18 anos, Mohammad Khalid Omer, não queria correr riscos.

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Hekmatullah Sahel, um taleban alocado para um distrito em Cabul, sobre as as colinas de uma mesquita que protege - Victor J. Blue -6.nov.2021/The New York Times

Ele e sua unidade de polícia com mais cinco combatentes, conhecida informalmente como unidade Sakhi, nome do santuário que defende, representa a vanguarda talibã em sua mais nova luta depois da surpreendente tomada do país pelo grupo, em agosto: eles ganharam a guerra, mas poderão garantir a paz em um país multiétnico arrasado por mais de 40 anos de violência?

Jornalistas de The New York Times passaram 12 dias com a pequena unidade talibã neste outono, acompanhando-a em diversas patrulhas por sua zona, o Distrito Policial 3, e viajando até suas casas na província de Wardak, uma área montanhosa próxima.

Até agora, a abordagem do policiamento pelo novo governo foi geralmente improvisada: unidades locais do Talibã assumiram o papel nos postos de controle do país, enquanto nas grandes cidades como Cabul os combatentes foram trazidos de províncias vizinhas.

Mesmo com apenas meia dúzia de membros, a unidade Sakhi oferece um retrato revelador do Talibã, em termos de quem são seus principais combatentes e qual é seu maior desafio como novos governantes do Afeganistão: antes uma insurgência principalmente rural, o movimento está sendo obrigado a governar e garantir os centros urbanos dos quais eles foram mantidos afastados durante décadas.

Os combatentes como Omer não dormem mais sob as estrelas, evitando ataques aéreos e planejando emboscadas a tropas estrangeiras ou ao governo afegão apoiado pelo Ocidente.

Em vez disso, eles estão lutando com as mesmas dificuldades econômicas que afetam seus conterrâneos, com a mesma ameaça de ataques do Estado Islâmico e com as ruas sinuosas e confusas de Cabul, cidade de aproximadamente 4,5 milhões de habitantes para os quais eles são praticamente estranhos.

A unidade Sakhi vive o tempo todo junto do santuário, em uma pequena sala de concreto pintada de verde-claro com um único aquecedor elétrico. Beliches de aço forram as paredes. A única decoração é um cartaz da Caaba sagrada em Meca (Arábia Saudita).

No Afeganistão, muitos xiitas pertencem à minoria étnica hazara. O Talibã, movimento sunita pashtun, perseguiu severamente os hazaras na última vez em que governou o país. Mas a aparente incongruência de uma unidade talibã proteger um local xiita tão emblemático é solucionada pela seriedade que os homens demonstram em sua missão.

"Não nos importamos com que grupo étnico servimos, nosso objetivo é servir e fornecer segurança aos afegãos", disse Habib Rahman Inqayad, 25, o líder da unidade e o mais experiente deles. "Nunca pensamos se essas pessoas são pashtuns ou hazaras."

Mas os sentimentos de Inqayad contrastam com o governo interino talibã, composto quase totalmente por pashtuns radicais que são emblemáticos do duro regime do movimento nos anos 1990, e que são vistos como contrários aos hazaras.

Enquanto ele falava no quartel lotado da unidade, um pequeno alto-falante tocava "taranas", canções de oração sem acompanhamento musical, popular entre os talibãs.

Uma das preferidas do grupo era uma canção sobre perder os amigos e a tragédia da juventude perdida. Com uma voz muito aguda, o cantor entoa "Oh, morte, você rompe e mata nossos corações".

Em um dia de outono do ano passado, enquanto a unidade Sakhi vigiava, famílias se reuniram nos terraços de lajotas em torno do templo, bebendo chá e compartilhando comida.

Alguns espiavam cautelosamente os talibãs que patrulhavam o local, e um grupo de jovens correu para apagar os cigarros quando eles se aproximaram. Os talibãs geralmente rejeitam os cigarros, e a unidade já puniu fisicamente fumantes algumas vezes.

Outro dia, dois adolescentes vieram ao santuário, caminhando ousadamente com suas namoradas. Eles foram confrontados pela unidade Sakhi, que perguntou o que estavam fazendo. Insatisfeitos com as respostas, os talibãs arrastaram os rapazes para o interior de sua sala para responder pela transgressão. No Afeganistão conservador, essa convivência em público é um tabu, sobretudo em um lugar sagrado sob a guarda talibã.

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Integrantes de uma unidade de polícia encarregados de proteger um santuário xiita, ao fundo - Victor J. Blue -3.nov.2021/The New York Times

Dentro da sala, houve uma discussão entre a unidade sobre como lidar com os rapazes: policial bom contra policial mau. Hekmatullah Sahel, um dos membros mais experientes da unidade, discordou de seus camaradas. Ele queria um castigo verbal, e não físico, mas foi vencido pela maioria.

Quando os adolescentes finalmente foram autorizados a sair, abalados pela surra que receberam, Sahel chamou os garotos e lhes disse para voltarem, mas sem as namoradas.

O episódio foi um lembrete aos visitantes do templo de que os combatentes talibãs, embora geralmente amistosos, podem voltar a usar as táticas que definiram seu regime religioso linha-dura nos anos 1990.

Para o grupo de seis combatentes, enfrentar adolescentes foi apenas mais um sinal de que seus dias de guerrilheiros terminaram. Agora eles passam o tempo mais preocupados com o policiamento cotidiano, como localizar possíveis contrabandistas de bebida (o álcool é proibido no Afeganistão), encontrar combustível para a caminhonete da unidade e imaginar se seu comandante lhes dará folga no fim de semana.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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