Descrição de chapéu terrorismo 11 de setembro

Foto de prisioneiros em Guantánamo completa 20 anos sem querer desaparecer

Registro de prisioneiros ajoelhados foi divulgado pelo próprio governo e gerou revolta de várias pessoas

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Guantánamo | The New York Times

Exatamente quatro meses após os ataques de 11 de Setembro de 2001, um fotógrafo ergueu uma câmera acima de uma cerca de arame farpado nova em folha e fez uma foto de 20 detentos de joelhos, usando uniformes cor de laranja, algemados, mascarados e de cabeça baixa.

A imagem desencadeou uma discussão acalorada sobre o que os Estados Unidos estavam fazendo em uma prisão na base naval de Guantánamo, que continua a operar até hoje. E tornou-se um dos símbolos mais duradouros e prejudiciais à política de detenção americana no século 21.

Mas um elemento importante se perdeu com o tempo na memória coletiva: a foto não foi vazada, revelando uma tortura que não se destinava aos olhos do público. Ela foi feita por um fotógrafo da Marinha americana e divulgada intencionalmente pelo Departamento de Defesa.

Detidos em macacões laranja sentam em uma área de detenção, enquanto são observados pelos militares dos EUA, no acampamento temporário de X-Ray, que mais tarde foi fechado e substituído pelo Acampamento Delta, dentro da base naval da Baía de Guantánamo
Detidos em macacões laranja sentam em área de detenção observados por militares dos EUA em acampamento temporário na base naval da Baía de Guantánamo, em 2002 - Shane T. McCoy - 11.jan.2002/Reuters

"Fiz exatamente o que me instruíram a fazer", diz Shane T. McCoy. "Encarregaram-me de documentar Guantánamo. Eu tinha que fotografar aquilo. E não podia deixar de divulgar a foto."

Era 11 de janeiro de 2002. No Afeganistão e no Paquistão, aliados detiveram centenas de suspeitos combatentes e integrantes da Al Qaeda e os entregaram às forças americanas. A CIA ainda não criara sua rede de prisões secretas, e o escândalo de maus-tratos de detentos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, levaria anos para estourar.

E um avião de carga da Força Aérea americana havia levado os primeiros prisioneiros à base no sudeste de Cuba –o "lugar menos pior" para a missão, disse o então secretário de Defesa Donald Rumsfeld. McCoy, à época suboficial da Marinha, foi encarregado de fotografar para a unidade de elite de Fotógrafos de Combate o dia de abertura do chamado Camp X-Ray.

Com o passar do tempo, os EUA acabariam mantendo cerca de 780 presos na base remota. Em questão de meses, depois de os primeiros 300 prisioneiros serem levados ao lugar, o Pentágono ergueu fileiras de toscas celas feitas de contêineres. Mais tarde, as Forças Armadas construíram uma prisão com ar condicionado que hoje abriga os últimos 39 detentos. Para o desgosto de uma sucessão de comandantes militares, a imagem daqueles 20 primeiros homens de joelhos não caiu no esquecimento.

Jornais e revistas voltam a publicá-la regularmente em reportagens sobre a prisão, a base de Guantánamo e a guerra ao terror. Manifestantes reencenam a foto. Combatentes do Estado Islâmico vestiram reféns em roupas laranjas antes de executá-los.

A imagem virou algo tão onipresente e emblemático que nem todo mundo sabe que ela foi feita em Guantánamo, prisão que a gestão George W. Bush converteu em operação-modelo de detenção.

Num episódio recente do programa "60 Minutes" sobre um ex-prestador de serviços da Agência Nacional de Segurança (NSA) que vazou um documento governamental, a foto divulgada pelas forças americanas ocupou a tela para ilustrar a ideia de que o governo tem recorrido ao sigilo "para esconder irregularidades –por exemplo, o uso de tortura na guerra contra o terror".

"[Como cada pessoa vê a imagem depende] de sua posição política, sua consciência de Guantánamo e do que aconteceu ali e de sua empatia. Depende de alguém de sua família já ter estado na prisão em algum momento", diz Anne Wilkes Tucker, ex-curadora do museu de Belas-Artes de Houston.

"Ela provavelmente será interpretada e reinterpretada para sempre. É tão rica de conteúdo, capaz de suscitar interpretações totalmente opostas, desde ‘nós os pegamos’ até ‘é bem provável que mais de metade deles seja inocente’."

McCoy, 47, hoje é fotógrafo do Departamento de Justiça. Ele recorda que aquele 11 de janeiro foi longo. Ele dividira o trabalho com outro fotógrafo da Marinha e, depois de um cara e coroa, acabou documentando os homens que aguardavam num complexo improvisado ao ar livre para serem registrados. Ao final, escolheu cerca de cem imagens, redigiu legendas para cada uma e as enviou a Washington.

No Pentágono, uma semana mais tarde, chegavam solicitações de veículos de imprensa pedindo transparência na operação de detenção em Cuba, ainda em fase inicial. Imagens granuladas, feitas com câmeras de visão noturna, tinham sido veiculadas do Afeganistão mostrando soldados americanos conduzindo prisioneiros esfarrapados e encapuzados.

"O problema era que a Convenção de Genebra proíbe especificamente que detentos sejam expostos ao ridículo ou à humilhação pública", escreveu a porta-voz de Donald Rumsfeld, Victoria Clarke, em seu livro de memórias "Lipstick on a Pig" (batom no porco), de 2006. Para "acalmar alguns de nossos críticos", ela obteve permissão e divulgou cinco fotos.

Pessoas no Pentágono viram na foto prisioneiros anônimos detidos em segurança, uma imagem que atendia às exigências da Convenção de Genebra. No mundo, ela foi percebida por algumas pessoas como cruel; elas enxergaram degradação, subjugação e privação sensorial.

"Foi um caso de analfabetismo visual por parte das Forças Armadas", diz Fred Ritchin, ex-professor de fotografia da Escola Tisch de Artes da Universidade de Nova York e reitor emérito do Centro Internacional de Fotografia. "Parece que foi feito um esforço para mostrar mocinhos prendendo aqueles que poderiam ter sido considerados os bandidos, pensando que o estavam fazendo de maneira digna. Outras pessoas não encararam assim."

Tanto McCoy quanto Clarke disseram que o Pentágono foi omisso por não ter explicado melhor o que estava acontecendo na imagem.

"A foto mostrou uma fatia muito pequena do que estava acontecendo em Guantánamo, sem revelar o bolo por inteiro", diz McCoy. "Foi como tirar algumas palavras de contexto" e criar uma narrativa alternativa.

Segundo ele, os prisioneiros estavam ajoelhados de pernas cruzadas "para que não pudessem se levantar rapidamente e sair correndo. McCoy acrescenta que já viu policiais colocarem detidos no chão nessa mesma posição.

Os gorros e as luvas eram usados para proteger os prisioneiros do frio no avião de carga usado para tirá-los do Afeganistão, onde era inverno. Os óculos totalmente escuros e os protetores de orelha estavam ali para impedir supostos inimigos de se comunicar e possivelmente tramar ataques. As máscaras azuis deveriam protegê-los contra a possível transmissão de tuberculose.

Sem uma explicação adequada, diz McCoy, vê-se apenas "uma imagem que deixou pessoas revoltadas".

"Sou da opinião de que as pessoas sempre devem poder ver a maior parte do que o governo está fazendo", afirma o fotógrafo. "O fato de eu ter registrado um pedacinho dessa história não me incomoda. Se as coisas mudaram para melhor, maravilha. Nunca testemunhei maus-tratos de qualquer tipo."

À época, Rumsfeld tentou consertar o estrago dizendo que os detentos estavam em trânsito e não eram mantidos naquelas condições. Ele disse que a divulgação das imagens foi "provavelmente lamentável", e o Pentágono parou de distribui-las —mas as grandes agências de notícias já o haviam feito.

McCoy tomou conhecimento da reação às suas fotos e telefonou para a mãe. "Falei a ela que eu tinha provocado um incidente internacional. Ela disse: ‘Tenho orgulho de você’. Ela sabia que eu só estava fazendo meu trabalho."

Tradução de Clara Allain

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