Fui entender o que é racismo no Brasil, diz guineense vítima de discriminação na Zara

Luís Fernandes Júnior foi acusado por segurança de roubar mochila que havia acabado de comprar; leia relato

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Guarulhos

Quando desembarcou no Brasil, há oito anos, vindo da Guiné-Bissau, Luís Fernandes Júnior, 28, sabia que migrava a contragosto da família, que temia as cenas de violência a que assistiam no programa "Cidade Alerta", da TV Record, cujo sinal chega ao país da costa oeste africana.

Ainda assim, ele estava feliz por ser um dos primeiros alunos do recém-inaugurado Campus dos Malês, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em São Francisco do Conde (BA). Lá, licenciou-se em pedagogia e, agora, é pós-graduando.

Na última semana de dezembro, após comprar uma mochila em uma loja da Zara no Shopping da Bahia, Luís foi acusado de roubo por um segurança, que o retirou do banheiro e exigiu que ele devolvesse o item. Ele afirma que essa foi a primeira vez que vivenciou discriminação. "Fui perceber o racismo no Brasil."

O guineense Luís Fernandes Júnior, 28, vítima de racismo numa loja da Zara, no bairro de Otinho, em São Francisco do Conde, na Bahia
O guineense Luís Fernandes Júnior, 28, vítima de racismo numa loja da Zara, no bairro de Otinho, em São Francisco do Conde, na Bahia - Rafael Martins/Folhapress

Luís engrossa a cifra de cerca de 7.400 guineenses que migraram para o Brasil nas últimas duas décadas, segundo levantamento do Observatório das Migrações Internacionais. Atrás apenas de Portugal e Angola, a Guiné-Bissau é a terceira nação lusófona com maior volume de migrações para o país no período.

Em resposta a um pedido de entrevista, a Zara Brasil enviou nota na qual diz ter realizado uma investigação e demitido uma funcionária por violação dos protocolos da empresa, sem dar mais detalhes.

A empresa já esteve envolvida em outros casos de discriminação. Em Fortaleza, a polícia apurou que uma loja da marca avisava aos funcionários por meio de um código anunciado por alto-falantes que havia alguém suspeito na loja, o que incluía pessoas negras.

A defesa de Luís pede R$ 1 milhão de indenização ao pós-graduando pelos danos psicossociais causados pela abordagem e pleiteia que a Zara adote medidas compensatórias na política da empresa. O advogado Thiago Thobias, da Educafro, descreve o pedido como uma indenização civilizatória, não apenas para seu cliente, mas para a sociedade. "A Zara tem feito isso de forma reiterada."

À Folha Luís contou sua história, as razões para estudar no Brasil e o que sentiu ao ser alvo de racismo.

Cheguei ao Brasil em maio de 2014. Antes, tive um grande problema na família —tenho nove irmãos, de diferentes mães. Contestaram muito a minha vinda. A gente assistia ao "Cidade Alerta", via o problema do tráfico, de menores com armas na mão, então a maioria ficou com uma visão muito pejorativa do Brasil.

Acredito que isso também é uma influência da colonização, quando existiram políticas de eurocentrismo. Para eles, a Europa, ou o Ocidente de modo geral, parece o único lugar possível para viver. Mas não tem lugar no mundo que não tenha problemas e, no Brasil, as políticas públicas me pareciam mais democráticas, muito embora a gente viva uma outra situação com o atual governo [de Jair Bolsonaro].

Falei "eu vou, eu vou escolher o meu destino". Pouco antes, tinha uma viagem a Portugal com o meu pai, que faria um tratamento. Mas ele faleceu enquanto eu esperava o visto sair. Foi quando ouvi um colega falar das bolsas no Brasil, inscrevi-me e fui bem. Vendi um terreno que o meu pai deixou para comprar a passagem, confiando que amanhã teria uma vida melhor para comprar um terreno maior.

Lendo o projeto pedagógico da universidade, gostei muito, porque eram as questões que eu sempre defendi. A minha educação toda teve uma filosofia baseada na ancestralidade, mas não no sentido de sangue, e sim de olhar para o outro como se fosse você mesmo.

Meu sobrenome, antes de Fernandes, era Mankua Kassakey. Mas minha família foi uma das assimiladas durante a colonização portuguesa. Meus avós, para que pudessem continuar com suas terras, tiveram que ser batizados pela Igreja Católica e mudar o nome. Até pouco tempo, eu tentei colocar ele no documento, mas é um processo que precisa fazer na Guiné-Bissau e também demanda recursos.

Fui perceber o racismo no Brasil. Nunca havia vivenciado isso. Na Guiné-Bissau, a discriminação se trata mais de uma questão de privilégios econômicos de alguns cidadãos que herdaram poder de portugueses ou, então, daqueles que falam português com sotaque de Portugal e são vistos como mais inteligentes.

Sou uma pessoa que tem paciência para explicar as coisas e também sou muito reservado. Saio da faculdade e venho para casa. Acho que por isso ainda não tinha sido vítima do racismo. Eu só assistia e ouvia falar. Na hora da abordagem, eu não conseguia entender por que aquilo estava acontecendo comigo. Na educação dos meus pais e avós, aprendi que todos nós somos humanos, a cor da pele não importa.

Já por experiência de pessoas que morreram em razão disso, eu nem tentei colocar a mão no bolso para mostrar a nota fiscal da mochila, porque o segurança poderia atirar alegando que eu estava armado. A forma de me abordar foi desumana. Tirar uma pessoa do banheiro, um espaço privado, para acusá-la de uma coisa que ela não fez. Foi difamação, calúnia, sem contar a xenofobia e o racismo.

Acredito que, se fosse um branco, ele não teria a mínima coragem de encarar tanto essa pessoa. O segurança disse que não tinha nada a ver com racismo, mas não acredito.

Quando contei para a minha irmã mais velha, foi um choque —no nosso contexto, quando morre nossa mãe, quem pode substituí-la é a irmã mais velha ou uma tia muito próxima. Ela foi uma das únicas que concordaram com a minha viagem em 2014. Ela falou: "Poxa, mesmo pobres, nunca passamos por algo assim, nunca alguém nos chamou de ladrão, e agora você está passando por isso sozinho".

Acredito que nenhuma pessoa que sai do seu país para outro vai com a intenção de ficar. Não existe valor maior que a família. Mas o tempo é o que vai definir isso. Você constrói novas amizades, conhece pessoas. Vou ficar aqui, no Brasil, e de vez em quando posso visitar a minha família.

Mas o que aconteceu causou um impacto que ainda me leva a refletir. Tenho dores de cabeça constantes. Fico pensando: vale a pena continuar essa luta de estudar, aprender mais e formar uma família? O que seria do meu filho amanhã? Para que colocar uma pessoa no mundo que pode sofrer? Dar educação, lutar pela dignidade dela e um dia chegar um sistema que acha que a pessoa boa tem uma determinada cor?

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