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Repressão da Índia sufoca ativismo de direitos humanos na Caxemira

Prisão de Khurram Parvez vira símbolo de política para coibir denúncias de abusos contra civis em área de conflito

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Samaan Lateef
Nova Déli

O último dia 10 de dezembro foi de calma excepcional na Caxemira governada pela Índia. Diferentemente de outros anos, o Dia Internacional dos Direitos Humanos não viu protestos ou ocupações na região em conflito. Ficaram fechados até mesmo os escritórios de organizações de defesa dos direitos humanos.

Também estava vazio o parque Pratap, na capital Srinagar, onde centenas de pais de desaparecidos costumam se reunir para pedir a volta de seus filhos. As ONGs estão caindo no esquecimento na Caxemira devido ao medo semeado pelas blitze frequentes lançadas por órgãos do estado indiano.

Membros do Grupo de Operação Especial vasculha mochila durante ação em Srinagar antes do Dia da República da Índia
Membros do Grupo de Operação Especial vasculha mochila durante ação em Srinagar antes do Dia da República da Índia - Tauseef Mustafa - 21.jan.22/AFP

Em novembro, a Agência Nacional de Investigação prendeu o conhecido ativista Khurram Parvez, 44, e o indiciou por infringir uma lei antiterrorismo. Ele foi denunciado por conspiração e por supostamente travar uma guerra contra a Índia, acusações que ele nega e vê como infundadas.

A detenção se deu num momento em que aumentam na região as mortes de civis pelas Forças Armadas indianas em confrontos controversos ou falsos. Em dezembro, o Ministério do Interior admitiu no Parlamento que, de 2017 a novembro de 2021, entre 37 e 40 civis morreram por ano na Caxemira.

Com Índia, China e Paquistão envoltos em conflitos na fronteira, as violações dos direitos humanos da população civil ali têm sido ignoradas. Não há reação global, exceto dos ativistas, que documentam esses abusos. Em 2018, a ONU divulgou seu primeiro relatório sobre desrespeitos do tipo na Caxemira —o Ministério das Relações Exteriores indiano considerou o documento "falacioso e tendencioso".

Em julho de 2019, a ONU lançou um segundo relatório, no qual pediu que o Conselho de Direitos Humanos do órgão "estude a possibilidade de criar uma comissão de inquérito para realizar uma investigação internacional ampla e abrangente sobre as alegações de violações dos direitos humanos na Caxemira".

Para um ativista que trabalha com a Coalizão da Sociedade Civil de Jammu e Caxemira (JKCCS), da qual faz parte Parvez, figura central de quase 20 anos de campanhas contra abusos cometidos por agentes do estado, o fato de os relatórios, produzidos com a ajuda da organização, terem causado constrangimento ao premiê Narendra Modi explica as consequências que defensores de direitos humanos agora enfrentam.

O assédio contra ativistas não é novidade na Caxemira, mas se intensificou após a chegada ao poder em 2014 do governo de direita do partido BJP, liderado pelo primeiro-ministro. Em 2019, cumprindo uma promessa de campanha, Modi anulou a autonomia limitada da Caxemira. Para evitar protestos públicos, prendeu milhares de pessoas, incluindo três antigos ministros-chefes da região.

Um ativista afirma, sob condição de anonimato por temer represálias, que civis vêm sendo mortos em falsos confrontos e que centenas de caxemires estão definhando em prisões, encarcerados devido a acusações arbitrárias, sem base em fatos. Para ele, a Índia vincula ativistas a militantes, procurando passar por cima das violações cometidas pelas Forças Armadas do país.

Entidades de direitos humanos já foram alvo de várias blitze da Agência Nacional de Investigação, durante as quais telefones, computadores e relatórios que documentam violações são confiscados.

A repressão fez com que ONGs parassem de divulgar relatórios anuais sobre os direitos humanos na Caxemira. Em geral, esses documentos incomodam os militares, porque os acusam de cometer estupros e assassinatos e de realizar desaparecimentos de pessoas detidas. Outro ativista diz que as forças de segurança indianas se negam a entregar às famílias os corpos de pessoas mortas por elas.

Em 2009, a JKCCS divulgou com destaque o caso de sepulturas não identificadas na Caxemira e afirmou que elas "receberam os cadáveres de pessoas assassinadas em enfrentamentos, falsos confrontos e execuções extrajudiciais sumárias e arbitrárias". Dois anos depois, o governo local reconheceu a presença de ao menos 2.156 corpos não identificados em covas não marcadas em 38 locais na região.

A organização de Parvez também investigou estupros em massa que teriam sido cometidos por membros do Exército indiano nos vilarejos de Kunan e Poshpora, no sul da Caxemira, em 1994, e, em uma série de relatórios divulgados entre 2012 e 2016, a JKCCS identificou o nome de pelo menos 1.500 membros das Forças Armadas citados por envolvimento com violações dos direitos humanos.

Em setembro de 2016, Parvez não foi autorizado a viajar a Genebra, na Suíça, para a 33ª conferência da ONU sobre direitos humanos. No dia seguinte, foi detido sob a polêmica Lei de Segurança Pública, sendo solto após 76 dias na prisão apenas quando a Alta Corte considerou a detenção ilegal.

A detenção mais recente do ativista é vista como parte de um movimento crescente de repressão desde que Nova Déli revogou a autonomia limitada da região. A Agência Nacional de Investigação, por sua vez, diz que as ONGs usam recursos para "atividades secessionistas e separatistas na Caxemira", ecoando o discurso de instituições e de funcionários do governo que questionam o ativismo de direitos humanos.

Em um evento em Hyderabad, o assessor de segurança nacional Ajit Doval descreveu a sociedade civil como "a nova fronteira da guerra", dizendo que ela pode ser "manipulada para prejudicar os interesses de uma nação". Até mesmo a Comissão Nacional de Direitos Humanos do país organizou um debate em torno da pergunta "os direitos humanos são um empecilho ao combate a males como o terrorismo?".

"Qualquer pessoa que já tenha ido à Caxemira para pesquisar sobre direitos humanos deve ter encontrado Parvez ou feito uma visita à sede da JKCCS", disse a antropóloga Shrimoyee Nandini Ghosh, que trabalhou para o coletivo como pesquisadora associada. "É uma organização inserida na sociedade."

Desde a prisão, os escritórios de ONGs em toda a Caxemira estão fechados. Antes, afirma um ativista da Associação de Pais de Pessoas Desaparecidas, a região recebia voluntários e estagiários de todas as partes da Índia. Era, diz ele, um lugar vibrante. "Mas de um ano para cá não temos mais estagiários. Eles têm medo de vir à nossa sede. Parece que o ativismo pelos direitos humanos na Caxemira está morto."

Tradução de Clara Allain

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