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Russos tapam os ouvidos enquanto mídia estatal intensifica retórica contra Ucrânia

Apresentadores agressivos lançam acusações a Kiev, mas população local se concentra em problemas domésticos

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Polina Ivanova Georgina McCartney
Moscou e Londres | Financial Times

Os talk shows agressivos da televisão estatal russa são uma plataforma na qual Viacheslav Kovtun fica muito à vontade. O analista de TV foi durante anos um dos poucos ucranianos a ser convidado com frequência para divulgar suas opiniões em transmissões ao vivo nas quais o clima muitas vezes ficava tão acalorado que os programas terminavam com trocas de socos.

Mas Kovtun, que costuma ser apresentado no ar como analista político, agora teme a possibilidade de guerra. Os talk shows na TV vêm intensificando sua retórica belicosa em meio às tensões crescentes na fronteira da Rússia com a Ucrânia. Alguns observadores dizem que é uma jogada do governo para convencer o público que qualquer conflito que venha a ocorrer não será culpa da Rússia.

Mulher caminha perto de uma escultura com o emblema da antiga URSS em uma praça de Moscou - Alexander Nemenov - 8.dez.2021/AFP

"Eles acompanham sempre a linha seguida pelo partido", diz Kovtun, sobre o posicionamento tradicionalmente pró-Kremlin dos talk shows. Nas últimas semanas, a mídia estatal vem transmitindo uma enxurrada constante de acusações contra a Ucrânia, ao mesmo tempo em que 100 mil soldados russos estão posicionados ao longo da fronteira, suscitando medo internacional de que Moscou esteja planejando invadir o país vizinho. O retrato traçado pelos talk shows é de Kiev como o agressor, apoiado por um Ocidente beligerante, enquanto a aliança entre Ucrânia e Ocidente cria uma ameaça perigosa à Rússia e a impele a contragosto para um conflito.

Os talk shows são especialmente proativos. Segundo disse em transmissão recente Irina Petrovskaia, apresentadora de um programa de análise de conteúdos de televisão na estação de rádio oposicionista Eco de Moscou, os participantes dos talk shows, muitos dos quais figuras das margens da política russa, "vivem pedindo um ataque, falando que devemos atacar, penetrar, derrotar, anexar".

Para ela, os programas são dominados por um clima de histeria militar.

O noticiário das TVs estatais tende a ser mais comedido. Mas nesta semana os jornais de TV alegaram que forças ucranianas transportaram substâncias químicas para o leste do país para potencialmente serem usadas como armas químicas, identificando cidades controladas por separatistas apoiados pela Rússia na região onde tais "provocações" poderiam ocorrer.

Num relatório publicado na semana passada, o Departamento de Estado americano descreveu essa alegação e outras como "desinformação e propaganda política" que visa "influenciar países ocidentais, levando-os a acreditar que o comportamento da Ucrânia pode provocar um conflito global".

O documento citou vários casos em que os EUA dizem acreditar que a Rússia estava fabricando pretextos para lançar uma ação militar. O jornalista Ivan Davidov, autor de uma coluna sobre mídia no site russo Znak, escreveu recentemente que "as previsões de guerra estão virando rotineiras" na TV estatal. O efeito disso seria o de normalizar o conceito de conflito. "A guerra passa a ser possível quando as pessoas deixam de encará-la como algo fora do comum", observou.

Ele diz ao Financial Times que a situação atual difere muito de 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e apoiou um levante separatista no leste da Ucrânia. Na época, a Rússia e os veículos de mídia estatais negaram ou minimizaram a importância do envolvimento militar e político de Moscou no leste da Ucrânia.

Agora, porém, analistas estão retratando um conflito armado como "uma opção possível, embora não muito desejável, para resolver problemas acumulados".

Ainda segundo Davidov, toda a mídia estatal retrata a Rússia como "o país mais pacífico do planeta". Segundo os órgãos de mídia, os líderes ocidentais "não querem ouvir, lançam acusações, provocam, ameaçam", e Moscou é obrigada a reagir. Denis Volkov, do centro de pesquisas independente russo Levada, diz que a mensagem da mídia estatal parece ter conseguido influenciar a população. Segundo pesquisa feita pela Levada em dezembro, apenas 4% dos russos pensam que seu país é culpado pela escalada das tensões. Cerca de 50% culpam os EUA e a Otan, e 16% atribuem a culpa à Ucrânia.

"A sociedade está preparada para a guerra, na medida em que absorveu a ótica pela qual o Kremlin e a mídia estatal russa mostram a situação –a ideia de que ‘a culpa não é nossa, é deles’", diz.

Mas, não obstante o discurso da mídia estatal, a maioria dos russos, segundo observadores, prefere não pensar em conflito. Grupos focais sugeriram que a população está cansada de viver em constante estado de confronto com o Ocidente e a Ucrânia, disse Volkov, e que a atitude prevalente é que "é assustador, é desagradável e eu não quero me envolver". "Quem vive na Ucrânia sente a guerra, mas na Rússia as pessoas não falam na guerra", afirma Arshak Makhichian, ativista climático russo de 27 anos detido recentemente em Moscou depois de realizar um protesto individual contra o conflito potencial.

Numa sondagem da Levada em dezembro, 53% dos entrevistados disseram que um conflito armado não vai acontecer ou é improvável. "A ideia de um conflito armado está sendo excluída da consciência pública. As pessoas não querem saber sobre isso", diz o sociólogo Serguei Belanovski, fundador do instituto de pesquisas Belanovski Group. Segundo ele, especialmente fora da região central de Moscou, as pessoas estão mais voltadas aos problemas internos do país do que à política externa. As discussões online são dominadas pela alta dos preços, notícias locais ou conteúdos antivacinas.

Entre os participantes de uma pesquisa da Levada feita em janeiro, 32% disseram que sua qualidade de vida decaiu no último ano, e apenas 11% consideraram que ela melhorou. Além disso, dizem analistas, a influência da TV está diminuindo enquanto a da internet cresce, assim como ocorre em outros países.

Tampouco está claro até que ponto os talk shows podem ser vistos como indicadores seguros do pensamento do Kremlin. "Ninguém sabe o que Putin pensa –você não sabe, eu não sei", diz Kovtun.

"As emissoras também estão tentando adivinhar."

Tradução de Clara Allain

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