Tentativa de unificação pode ser última chance da esquerda francesa nas eleições

No passado força poderosa na política do país, esquerda se encontra em frangalhos

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Constant Méheut Léontine Gallois
Paris | The New York Times

A situação desanimadora da esquerda francesa antes das eleições presidenciais do próximo abril foi exemplificada à perfeição em telefonemas feitos recentemente por Arnaud Montebourg, ex-ministro governamental socialista cuja campanha para presidente mal chegou a ser notada nas pesquisas de opinião.

Montebourg postou no Twitter vários vídeos em que ele telefona a quatro outros candidatos de esquerda, todos os quais vêm tendo resultados tão ruins quanto os dele nas pesquisas. Foi um esforço desajeitado de último minuto para exortar os socialistas, verdes, comunistas e outros esquerdistas a se unirem em apoio a uma chapa presidencial única, sob pena de ser esmagados pela direita e a extrema direita em abril.

Ninguém atendeu.

Arnaud Montebourg, ex-ministro governamental socialista, durante discurso na tradicional Festa da Rosa em Frangy-en-Bresse, no leste francês
Arnaud Montebourg, ex-ministro governamental socialista, durante discurso na tradicional Festa da Rosa em Frangy-en-Bresse, no leste francês - Jeff Pachoud - 25.set.21/AFP

Com as eleições se aproximando, a esquerda —no passado uma força poderosa na política francesa— se encontra em frangalhos. Muitas de suas vozes mais conhecidas parecem incapazes de apostar naquilo que, para analistas e para seus seguidores, oferece o único caminho possível para a vitória: a união.

Num país que vem se deslocando para a direita, a esquerda se vê sem voz em questões como segurança, imigração e identidade nacional. E ela não conseguiu aproveitar em benefício próprio a onda de protestos pelo ambiente e a justiça social, que deveria lhe ter aberto oportunidades de angariar apoio.

"A esquerda se encontra em situação de fragilidade ideológica sem precedentes", comentou Rémi Lefebvre, professor de ciência política na Universidade de Lille. "Nesse contexto, estar dividida é suicídio."

Em meio ao caos e à inação, agora se vê um esforço para buscar ordem.

Contornando as táticas partidárias tradicionais, a chamada "Primária do Povo", um esforço crescente liderado por um grupo da esquerda que está farto do sectarismo e fragmentação dos partidos políticos, vai promover uma votação em janeiro para seus apoiadores escolherem um candidato único, antes de o eleitorado francês como um todo ir às urnas.

As sondagens atuais apontam a razão por que alguns elementos da esquerda estão procurando outro caminho. Sete candidatos de esquerda concorrem a presidente no momento, e nenhum deles chega a ter 10% das intenções de voto.

Juntos, esses candidatos representam cerca de um quarto dos votos, ou seja, 20 pontos menos do que tinha a esquerda francesa uma década atrás. A chance de qualquer candidato de uma esquerda unificada receber votos suficientes para chegar ao segundo turno da eleição —na qual provavelmente enfrentaria o presidente atual, Emmanuel Macron— parece pequena.

Mas o esforço para realizar uma primária em janeiro traz a esperança de um caminho para a esquerda recuperar sua relevância. E tem o potencial de agitar ainda mais uma campanha presidencial que já foi perturbada pela entrada na disputa da figura polarizadora do escritor e celebridade televisiva de extrema direita Éric Zemmour.

A esquerda francesa foi dominada durante anos pelo Partido Socialista e sua política democrata-social, mas a vitória de Macron nas eleições presidenciais de 2017 assinalou o fim do sistema bipartidário na qual os socialistas tinham uma posição assegurada.

Hoje a esquerda é uma mistura confusa, dividida principalmente entre os socialistas, os verdes e o partido de extrema esquerda França Insubmissa —para não falar na constelação de pequenos partidos de extrema esquerda saídos do quase colapso do Partido Comunista.

Os líderes da campanha pela primária começaram a trabalhar pela proposta em janeiro. Passaram meses negociando com a maioria dessas agremiações para chegar a uma plataforma comum de dez propostas de justiça social e climática, incluindo um aumento dos impostos sobre os ricos e o fim do uso de pesticidas até 2030.

Mais de 300 mil pessoas já aderiram à iniciativa —o equivalente a 40% de todos os filiados a partidos de esquerda na França. Elas vão votar em janeiro para escolher um candidato comum e prometeram fazer campanha por esse candidato.

Mas será uma estrada longa.

Samuel Grzybowski, um porta-voz da Primária do Povo, disse que sua equipe foi pressionada pelos partidos estabelecidos a encerrar o processo. Alguns partidos teriam até oferecido ajudá-los a conquistar cadeiras no Parlamento se se afastassem da corrida presidencial.

"Tem sido um longo ‘Baron Noir’", ele disse, aludindo a um série de sucesso na TV que retrata o lado escuso da vida política francesa —uma espécie de versão francesa de "House of Cards".

Jean-Luc Mélenchon, líder da França Insubmissa, descreveu os chamados por unidade como tardios e "patéticos". Aos poucos, entretanto, a maré começou a virar.

Os chamados desesperados de Montebourg chamaram atenção, e então a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, candidata presidencial do Partido Socialista que viu sua base de apoio cair para menos de 5%, reconheceu que a esquerda se encaminha para um desastre.

"Esta esquerda fragmentada, esta esquerda que hoje leva muitos de nossos cidadãos ao desespero, precisa se reagrupar", ela disse no jornal de TV mais visto na França. "Precisamos organizar uma primária."

Seguiu-se uma carta pública exortando os partidos a concordarem com a proposta da primária. Chamados semelhantes já haviam sido lançados por membros de vários outros partidos.

O movimento ganhou ímpeto adicional quando Christiane Taubira —carismática ex-ministra da Justiça no governo de François Hollande, presidente socialista da França entre 2012 e 2017— anunciou que estava considerando a possibilidade de candidatar-se à Presidência e que investiria toda sua força "nas últimas chances de unidade". No dia seguinte ela disse que o esforço pela primária "parece o último espaço no qual será possível construir essa unidade".

A iniciativa de Taubira provavelmente vai aumentar a pressão sobre os candidatos que ainda não aderiram à primária de esquerda, como o candidato verde Yannick Jadot. Minutos após o anúncio de Taubira, Sandrine Rousseau, líder dos verdes que também está fazendo campanha por Jadot, afirmou que é necessária "uma coalizão da esquerda".

"A balança do poder acaba de pender em nosso favor", disse Grzybowski.

O apelo por uma primária dos cidadãos espelha o desencanto crescente com os partidos de esquerda tradicionais. Muitas pessoas de esquerda hoje consideram as políticas de justiça social e economia equitativa dos partidos superadas. Algumas ainda encaram a política econômica de François Hollande, favorável às empresas, como uma traição.

"Não são mais os partidos políticos que impelem o debate público", disse Hugo Viel, 23 anos, formado em engenharia e voluntário da Primária do Povo.

"São os movimentos sociais, as marchas climáticas, o movimento #MeToo, os coletes amarelos", ele disse, citando muitos protestos que agitaram o país recentemente e que tratam de questões como desigualdade econômica, racismo e violência doméstica.

Mas os partidos políticos de esquerda têm dificuldade em traduzir esses protestos em propostas concretas e apoio maior. Estão fora de contato com esses movimentos sociais, têm tido dificuldade em ampliar sua presença fora das grandes cidades e mergulharam em disputas internas amargas, com choques entre vertentes concorrentes de feminismo e antirracismo de gerações diferentes.

Tradução de Clara Allain

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