Ação de Putin na Ucrânia mira o que ele chama de 'império de mentiras' do Ocidente

Presidente russo converteu sua indignação numa visão de mundo que o consome

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Roger Cohen
Paris | The New York Times

O presidente Vladimir Putin enviou tropas russas para invadir a Ucrânia, mas deixou claro que seu alvo real transcende o país vizinho: é o "império de mentiras" da América. E ameaçou "quem tentar interferir conosco" com "consequências que jamais enfrentaram em sua história".

Em um discurso repleto de queixas históricas e acusações de um complô implacável contra seu país, Putin lembrou ao mundo na quinta-feira (24) que a Rússia "ainda é um dos Estados nucleares mais poderosos", dotado de "certa vantagem em várias armas de ponta".

Protesto contra a guerra na Ucrânia da comunidade de imigrantes em Montréal, no Canadá - Andrej Ivanov - 25.fev.22/AFP

Seu discurso visando justificar a invasão parece ter chegado mais perto de ameaçar com uma guerra nuclear que qualquer declaração de um importante líder mundial nas últimas décadas. Seu objetivo imediato era óbvio: impedir qualquer iniciativa militar ocidental possível, deixando claro que ele não hesitará em escalar as hostilidades.

Dado o arsenal nuclear russo, disse: "Não deve haver dúvida que qualquer agressor potencial enfrentará a derrota e consequências tenebrosas caso ataque nosso país diretamente. Todas as decisões necessárias a esse respeito já foram tomadas".

A invasão da Ucrânia e a ameaça nuclear mal velada acabaram com as noções europeias de segurança e a premissa de paz com a qual o continente vive há gerações. O projeto europeu do pós-guerra, que produziu estabilidade e prosperidade, ingressou agora numa etapa nova, incerta e marcada pelo confronto.

No período que antecedeu a invasão russa, líderes ocidentais fizeram a romaria a Moscou para tentar persuadir Putin a não implementar seu plano. Os americanos ofereceram, essencialmente, um retorno ao controle de armas. O francês Emmanuel Macron estava disposto a buscar numa nova arquitetura de segurança se Putin estivesse insatisfeito com a velha.

A confiança sincera, possivelmente ingênua de Macron e do premiê alemão Olaf Scholz na possibilidade de levar Putin a agir com a razão sugere um abismo entre os mundos que habitam. O líder russo não estava interessado em usar um bisturi fino para aperfeiçoar a ordem de segurança da Europa –queria brandir um facão cego para talhar, ao estilo da Guerra Fria, uma linha clara entre o meu e o de vocês.

A Europa redescobriu sua vulnerabilidade. Macron disse na quinta-feira que Putin "decidiu provocar a mais grave violação em décadas da paz e estabilidade em nossa Europa". Sobre os ucranianos, disse que "a liberdade deles é nossa liberdade".

Mas nenhum país europeu, tampouco os EUA, vai colocar vidas em risco por essa liberdade. A questão, portanto, é como eles podem traçar uma linha intransponível para Putin.

Depois da guerra curta que travou na Geórgia em 2008, de sua anexação da Crimeia em 2014, de orquestrar em 2014 o conflito militar no leste da Ucrânia que criou duas regiões separatistas e de sua intervenção militar na Síria em 2015, Putin evidentemente concluiu que a disposição da Rússia de usar as Forças Armadas para promover seus objetivos estratégicos ficará sem resposta por parte dos EUA e seus aliados europeus.

"A Rússia quer insegurança na Europa porque a força é seu trunfo", diz Michel Duclos, ex-embaixador francês. "Ela nunca quis uma nova ordem de segurança, fossem quais fossem as ilusões europeias a esse respeito. Putin decidiu algum tempo atrás que um confronto com o Ocidente era sua melhor opção."

Stephen Walt, professor de assuntos internacionais na Kennedy School, da Universidade Harvard, afirma que a conversa sobre conflito nuclear é preocupante. "Mas acho difícil crer que qualquer líder mundial, incluindo Putin, contemple seriamente usar armas nucleares em qualquer dos cenários que temos aqui, pela simples razão de que entende as consequências."

Mesmo assim, a história já mostrou que guerras europeias envolvendo uma grande potência global podem sair do controle. Uma guerra longa na Ucrânia pode eventualmente acabar envolvendo Polônia, Hungria ou Eslováquia. A Europa Central e os Estados bálticos, concretamente a linha de frente da Otan contra a Rússia, vão conviver com um clima de ameaça crível por algum tempo.

Um cenário tenebroso –improvável, mas menos improvável do que era antes da invasão— é que Putin, que exigiu que a Otan se retire das ex-repúblicas soviéticas, voltando à formação anterior a 1997, acabe voltando sua atenção a Lituânia, Estônia e Letônia.

Duclos sugere que o objetivo de Putin pode muito bem ser instalar um governo russo fantoche em Kiev. "Se conseguir fazê-lo, ele vai querer a mesma coisa nos Estados bálticos".

Subjugados no império soviético após a Segunda Guerra, os três países entraram para a Otan em 2004. O presidente Joe Biden prometeu que os EUA e seus aliados vão "defender cada centímetro de território" da aliança —um ataque russo contra a pequena Estônia poderia desencadear a conflagração.

Imediatamente após a invasão russa, os três Estados bálticos e a Polônia acionaram o Artigo 4 do tratado fundador do grupo, que permite aos membros realizar consultas quando sentem que sua integridade territorial está ameaçada.

A maioria dos Estados europeus, especialmente a França, via a convicção dos EUA de que uma invasão russa era praticamente inevitável como demasiado alarmista, mas as divergências foram passadas por cima em nome do esforço diplomático.

No final, os esforços diplomáticos nos quais os europeus punham fé estavam fadados ao fracasso. Isso porque Putin, cada vez mais isolado, mergulhou numa fúria revanchista. A raiva crescente nas duas últimas décadas é voltada contra o que ele encara como humilhação da Rússia pelo Ocidente após a dissolução da União Soviética e a subsequente expansão da Otan para o leste.

Mas o líder russo converteu sua indignação numa visão de mundo que o consome, baseada na ideia da iniquidade dos EUA. Resta a ver o que isso vai significar em termos militares nos próximos anos.

"Em quase todo lugar, em muitas regiões do mundo onde os EUA levaram sua lei e ordem, isso criou feridas sangrentas que nunca saram", disse. "Todo o chamado bloco ocidental formado pelos EUA em sua própria imagem e semelhança é o mesmíssimo ‘império de mentiras’."

Putin pareceu ignorar o fato de que a coreografia da invasão russa tem sido marcada por uma extraordinária, embora previsível, linguagem ambígua, feita de declarações que invertem os fatos. Ela inclui acusações de "humilhações e genocídio" e o reconhecimento russo da independência das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk para que pudessem "pedir auxílio" sob a Carta das Nações Unidas.

No final, Putin parece não ter hesitado em ordenar a entrada das forças russas na Ucrânia. Ele acusou as autoridades de Kiev —todas usurpadoras neonazistas, em sua visão— de desejar "adquirir armas nucleares" para um confronto inevitável.

A Ucrânia possuiu um vasto arsenal nuclear no passado, até abrir mão dele em 1994, sob um acordo do qual a Rússia participou, prometendo em contrapartida que jamais usaria força ou ameaças contra a Ucrânia e que respeitaria sua soberania e suas fronteiras existentes.

Tradução de Clara Allain

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