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Rússia

EUA prometem cortar empréstimos, mas Rússia tem como aguentar

Se retaliações pararem por aqui, Putin salva própria cara no ambiente doméstico e evita guerra extensa e custosa

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São Paulo

União Europeia e Reino Unido até agora prometem punir Vladimir Putin com sanções que não causariam grande prejuízo para a economia russa. Os Estados Unidos foram um tanto além. Em discurso na tarde desta terça-feira, Joe Biden disse em termos genéricos que o governo russo não pode mais tomar dinheiro emprestado na "finança do Ocidente". Até o final da tarde, não havia detalhes sobre essas "sanções abrangentes" contra o financiamento da dívida russa.

O governo russo não precisa levantar dinheiro no mercado externo para financiar seus pequenos déficits. Além do mais, por causa de sanções antigas, a dívida externa russa vem caindo: de cerca de US$ 668,5 bilhões em 2013 para US$ 478 bilhões em 2021 (dados do Banco Mundial e do Banco Central da Rússia). Desse total, cerca de US$ 80 bilhões são dívida pública (5% do PIB) —o restante é de empresas privadas, que ainda se financiam e refinanciam no mercado externo, mas com cada vez mais dificuldade.

Representação do presidente da Rússia, Vladimir Putin, em carro alegórico carnavalesco de Colônia, na Alemanha - Thilo Schmuelgen - 22.fev.22/Reuters

A longo prazo, a falta de crédito externo deve prejudicar a economia russa. Por ora, como se vê, eles se viram, suas contas externas são superavitárias (comércio e finança trazem mais dinheiro do que mandam) e o país tem cerca de US$ 600 bilhões em reservas.

As sanções "ocidentais" que prejudicam o financiamento apenas aumentam restrições que vêm desde 2014 e, em particular, desde 2021. A novidade maior agora foi a proibição de instituições financeiras americanas e de americanos em geral de participarem de negócios com títulos da dívida russa no mercado secundário (mercado primário: quando o governo lança títulos, pede o empréstimo; secundário: venda e compra desses títulos), para títulos emitidos depois de março de 2022.

Além do mais, os americanos proibiram negócios com dois bancos estatais russos. Um deles, o VEB, é uma espécie de BNDES, financia infraestrutura e programas industriais. O outro, o PSB, financia 70% dos contratos do Ministério da Defesa e é banco de negócios individuais de militares. Vai ficar mais difícil achar financiamento (e o chinês?), mas Putin tem um projeto de autarquia econômica.

No caso de as retaliações pararem por aqui, ainda seria um custo suportável para ocupar para sempre parte do leste da Ucrânia, salvar a cara do autocrata na política doméstica ("vitória") e evitar uma guerra extensa, cara, com muita morte e financeiramente daninha.

Quanto a medidas mais duras no que diz respeito ao comércio de energia, a retaliação pode ter efeito bumerangue, com preços de energia ainda mais altos. No discurso em que anunciou sanções, Biden disse também que "quer limitar a dor que os americanos sentem na bomba de gasolina", mas que "defender a liberdade tem custos", inclusive domésticos.

O governo russo tem dívida pequena, cerca de 20% do PIB (no Brasil, mais de 80%). O déficit público é baixo, controlado e tem sido "confortavelmente financiado por meio de empréstimos domésticos, especialmente por grandes bancos locais", dizia o FMI, em relatório de 2021. Claro que, a depender das restrições, as estatais podem ter problemas de capital —aqui, o tamanho e o alvo da paulada é que contam. Mas a China mora ao lado.

O governo da Alemanha suspendeu o processo de liberação de funcionamento do gasoduto Nord Stream 2. Trata-se de dois grandes canos de gás que vão da Rússia à Alemanha, sob o mar Báltico. A empresa é propriedade de uma subsidiária suíça da estatal Gazprom. Custou cerca de US$ 11 bilhões, metade financiada por empresas de energia como a Engie, francesa, Wintershall Dea e Uniper, alemãs, OMV, austríaca, e Shell, anglo-holandesa.

As grandes petroleiras europeias e americanas têm sociedades com empresas russas ou campos de exploração na Rússia. Executivos "ocidentais" e Gerhard Schroeder, ex-premiê alemão (1998-2005), têm postos nas estatais russas de energia. Schroeder preside conselhos na Nord Stream, na Nord Stream 2 e foi nomeado para o conselho da Gazprom.

Do gás natural consumido na União Europeia, entre 36% a 40% vem da Rússia (47% do total das importações da UE no primeiro semestre de 2021), segundo o Eurostat, serviço de estatística do bloco. Mas o gás continuaria fluindo pelo Nord Stream 1 e pela Ucrânia, por exemplo.

A UE disse nesta terça que pretende impor dificuldades para governo, bancos e empresas estatais da Rússia levantarem dinheiro nos mercados de capitais e financeiros (pedirem emprestado). Quer ainda prejudicar os "envolvidos" na decisão ilegal de reconhecer as republiquetas de Donetsk e Lugansk (isto é, gente do Parlamento e do governo russos). Vai colocar "na mira" bancos que financiam operações russas na região e impedir o comércio do bloco com os separatistas. Mas não especificou as ameaças.

Restringir a vida dos deputados e da cúpula do governo russo no exterior pode doer. Mas é difícil de imaginar que a elite política de Moscou não estivesse preparada para restrições. Os EUA dizem que vão bater forte nessa elite, nos oligarcas em particular. Boris Johnson prometeu pegar três (3) ricos russos também: três.

No entanto, a julgar pelo que dizem analistas e especialistas que aparecem na mídia ocidental e em relatórios de instituições financeiras globais, ninguém parece saber muito bem qual a relação de Putin com seus generais, com a elite política e com oligarcas. Isto é, se o poder do autocrata poderia ser abalado por punições financeiras a gente da cúpula russa.

A Rússia depende das vendas de petróleo e gás para sobreviver. Em 2021, cerca de 42% de suas exportações foram de energia (e as exportações equivalem a quase 27% do PIB), segundo dados compilados pelo FMI. A Rússia tem cerca de 11% das exportações mundiais de petróleo. Da arrecadação do governo, quase 18% vem de receitas de petróleo e gás, segundo as estatísticas do Ministério de Finanças da Federação Russa (no acumulado de 12 meses até novembro de 2021).

Mas não há menção até agora de que o "Ocidente" vá estrangular as receitas de moeda forte e de impostos da Rússia por meio da limitação do comércio de energia. Se por mais não fosse, a União Europeia faz 47% de suas compras externas de gás e 25% das aquisições de petróleo na Rússia, ressalte-se. No caso do gás, os europeus ocidentais poderiam fazer suas compras em outra parte, mas pagariam mais caro.

Mais importante, qualquer redução na margem ora mínima de folga do mercado mundial de energia resultaria em tumulto enorme. O "Ocidente" vai comprar (e pagar) essa briga? Por falar nisso, nem mesmo a Ucrânia havia rompido relações com a Rússia, até a noite desta terça-feira no Brasil.

Ainda nesta terça, o preço do petróleo recuava do salto da manhã, para US$ 96,50 o barril (do tipo Brent). No entanto, ele custava US$ 77 no início deste ano, alta de quase 25%. Carestia maior pioraria a crise feia dos custos de energia na Europa —a gritaria lá é tão grande quanto aqui ou maior, com medidas para subsidiar a conta de aquecimento e luz dos mais pobres.

Um tumulto no mercado elevaria ainda mais o preço da gasolina nos EUA, grande fator de impopularidade política, e a inflação em geral. Seria ainda mais prejuízo para o prestígio de Joe Biden, que vai enfrentar eleições no final do ano, quando, afora milagres, deve perder o controle de Câmara e Senado.

Biden passa por um "processo Carter". Jimmy Carter, presidente de 1977 a 1981, governou sob uma alta histórica da inflação (que chegou a mais de 13% no ano final de seu mandato), explosão dos preços do petróleo e teve problemas ruins na política internacional (reféns na embaixada no Irã revolucionário, fiasco na tentativa de resgate).

Biden já tem na conta a inflação, a gasolina cara e um fiasco externo no Afeganistão. A comparação para por aí, nesses indicadores, no entanto relevantes para um governante, como o americano, que é considerado principalmente como "comandante-chefe" e gestor geral da economia. Não explicam tudo, nem de longe, claro, mas Biden não precisa de mais más notícias.

As Bolsas de EUA caíam sem exagero nesta quarta; as taxas de juros da dívida do governo dos EUA diminuíam (isto é, havia mais compras de títulos do governo, investidor em busca de "segurança"). Houve saltos no preço de trigo, milho, soja e óleos nas Bolsa —Rússia e Ucrânia exportam 30% do trigo no mercado mundial; a Ucrânia, 17% do milho, além de produzir muito óleo vegetal. No Brasil, os negociantes de dinheiro nem ligavam para a crise: o real continuava sua impressionante valorização e a Bolsa ainda subia.

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