Bolsonaro cometeu erro gravíssimo de política externa na guerra da Ucrânia, diz diplomata

Na avaliação de Roberto Abdenur, na carreira por 45 anos, honra do setor vive momento decisivo no Brasil

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Brasília

A diplomacia brasileira viveu os seus piores dias nas últimas semanas, ao não condenar explicitamente a invasão da Ucrânia pela Rússia, na avaliação de Roberto Abdenur, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, o Cebri.

A primeira mensagem de tom duro veio do representante do país na ONU, Ronaldo Costa Filho, em reunião nesta sexta (25), na qual o país votou a favor de resolução para condenar a ação de Moscou —que acabou barrada pelo veto dos próprios russos.

O presidente brasileiro Jair Bolsonaro em visita ao túmulo do soldado desconhecido durante viagem a Moscou - Maxim Shemetov - 16.fev.22/Reuters

Diplomata com 45 anos de carreira, com passagem pelo posto de embaixador em Pequim e Washington, Abdenur afirma que o presidente Jair Bolsonaro (PL) piorou a já comprometida imagem do Brasil na comunidade internacional ao declarar dias antes da guerra que "somos solidários à Rússia" —sem especificar a qual aspecto—, e o corpo diplomático não soube reagir. "O Itamaraty claramente se contorceu por pressão do Bolsonaro", afirma.

Abdenur não acredita que o presidente Vladimir Putin tenha entre seus planos ir além da Ucrânia, mas está surpreso e preocupado com a escalada da tensão de ambos os lados. "Estamos vivendo uma ruptura na estrutura da chamada ordem internacional liberal, fundada nos princípios básicos da ONU e que preservou a paz no mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, mesmo atravessando a Guerra Fria", diz. "É um abalo gravíssimo e vai ter repercussões."

Como interpretar uma ação bélica tão enfática de Putin na Ucrânia, mesmo após inúmeros apelos de chefes de Estado? Se olharmos a história, houve dois acontecimentos traumáticos para a Rússia, mais ou menos ao mesmo tempo. A decomposição da União Soviética e a perda da Ucrânia, território que russos consideravam seu. Em dezembro de 1991, a Ucrânia fez um referendo, mais de 80% compareceram às urnas e mais de 80% votaram a favor da independência —inclusive as regiões do Leste, onde hoje estão as duas autoproclamadas repúblicas independentes.

Em um artigo de 2014, pouco depois da anexação da Crimeia, Henry Kissinger, um dos grandes estadistas do século passado, destaca que a Ucrânia está dividida entre duas porções que nem sempre se entendem —o leste predominantemente russo e voltado para Moscou, e o oeste ucraniano propriamente dito e voltado para o Ocidente. E que o país tem um problema de identidade nacional a resolver, sendo importante que nenhuma das partes tentasse se sobrepor.

Isso foi rompido com a guerra civil, provocada pela insurgência de pró-russos do leste, insuflados e apoiados, inclusive militarmente, por Putin. Essa espécie de guerra civil velada provocou de 13 mil a 15 mil mortes dos dois lados. Assim, a Rússia czarista, a soviética, até a dos dias de hoje, sente que teve uma parte amputada. É por isso que Putin não reconhece a Ucrânia como um Estado independente

Nessa perspectiva, Putin teria razão para a invasão, então? Absolutamente não. Putin deve ser condenado e boicotado da maneira mais veemente possível. Nos dias atuais, é preciso reconhecer que a Rússia tem preocupações válidas com sua segurança diante da expansão da Otan na direção de suas fronteiras. Em política internacional, é sempre mais complicado uma situação em que os dois lados têm razões fundadas. A adesão da Ucrânia à Otan seria o último dominó a cair na fronteira.

O objetivo de Putin na Ucrânia não é só mudar o governo. É mudar o regime e instalar outro, que seja solidário e obediente a Moscou, e uma autocracia, como Hungria, Cazaquistão e a própria Rússia. Putin não vai anexar a Ucrânia, mas seguramente manterá uma ocupação até chegar a algum entendimento.

Era uma tensão histórica com riscos previsíveis. Há dois fatos pouco conhecidos que mostram isso. Durante o governo de George Bush pai, o secretário de Estado James Baker se preocupou que, com a dissolução da União Soviética, armas nucleares estavam espalhadas por diferentes países, entre eles a Ucrânia de um lado e o Cazaquistão do outro. Os EUA fizeram um movimento muito grande junto a esses países e a própria Rússia, defendendo que todas as armas nucleares da ex-URSS ficassem concentradas nas mãos da nova Rússia, e assim ocorreu.

Depois, Bill Clinton lançou a Parceria para Paz. Era uma tentativa para evitar uma nova divisão da Europa e de incluir todos os países, inclusive a Rússia, num grande esquema de segurança coletiva. Isso acabou não prosperando. Houve mudança de governo, e países que tinham sido parte da URSS se sentiram ameaçados pela nova Rússia e, depois, pela Rússia de Putin. Buscaram refúgio na Otan e foram acolhidos de braços abertos. Mas as últimas manifestações da Otan foram preocupantes.

Em que aspecto? A Otan emitiu um comunicado criticando duramente a Rússia. Mas o secretário-geral declarou que estão deslocando tropas de diferentes países para reforçar sua presença no Leste Europeu e deter eventuais aventuras da Rússia. Biden disse que não aceitarão a invasão de um centímetro de algum país da Otan. Então, a invasão da Ucrânia está levando a um nível de tensão inédito na Europa. Há 30 anos, desde o fim da Guerra Fria, não acontecia algo assim.

Como o sr. avalia a postura da China? Xi Jinping, em uma ligação com Putin, o exortou a negociar. Mas Rússia e China promoveram recentemente um terremoto na ordem geopolítica. A aliança estratégica que anunciaram contém uma frase inédita nos anais da diplomacia, uma "parceria sem limites".

Agora, na prática, não é tão sem limites assim. Na reunião do Conselho de Segurança da ONU na noite de 23 para 24 [de fevereiro], quando a invasão já tinha sido iniciada, o embaixador chinês disse que era preciso levar em conta os interesses legítimos de todas as nações, mas que a China reiterava seu compromisso inabalável com o princípio do respeito à soberania e integridade territorial de todas as nações. É interessante: no órgão mais importante, Pequim deu uma indireta a Putin, embora sem condenar abertamente a invasão, e exerce pressão para que Putin negocie com o outro lado.

Ele não pode deixar de acatar Xi, porque a parceria com a China é fundamental para seu regime de poder.

É impossível imaginar que Putin não previu toda essa pressão, não? Calculou tudo. Como disse Biden, enquanto ele dialogava e parecia estar disposto a negociar, preparava a escalada militar. E Volodimir Zelenski [presidente da Ucrânia], inocente e preocupado em evitar perturbações internas, dizia que tudo estava normal. Deixou de preparar o país para se defender.

Putin sabia que isso teria repercussões sérias, levaria as sanções duras. Ele reuniu uma reserva de US$ 630 bilhões [R$ 3,2 trilhões] e fez substituições de importações. Mas a Rússia não está imune. Então, estamos vivendo uma ruptura na estrutura da chamada ordem internacional liberal, fundada nos princípios básicos da ONU e que preservou a paz no mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, mesmo atravessando a Guerra Fria. E um abalo gravíssimo, vai ter repercussões importantes.

No limite, uma Terceira Guerra Mundial é possível? É uma hipótese tão distante, delirante, que prefiro não elaborar.

Como o sr. avalia a posição do Brasil? O Itamaraty claramente se contorceu por pressão do Bolsonaro. O presidente cometeu um gravíssimo erro de política externa.

O sr. fala da viagem dele à Rússia? Foi inoportuno e contraproducente. Veja bem, ele disse aquela frase irresponsavelmente, mas é séria. Teve repercussão, foi repudiada por países que esperavam do Brasil uma postura diferente. O Bolsonaro fez a afirmação levianamente, porque não percebe as consequências do que diz. Mas teve a oportunidade de se corrigir, podia falar: "Queria expressar minha fé na negociação, mas agora, diante da gravidade do que aconteceu, não posso deixar de criticar a Rússia".

A qual frase o sr. se refere? "Somos solidários com a Rússia." Dizer isso significou apoiar um regime de força que ameaçava a soberania e a integridade do território de outro país. O governo Bolsonaro, desde a primeira hora, queimou as pontes com as democracias europeias, com os EUA depois da queda de Donald Trump, com a China, com a Argentina. Hoje pouco dialoga com seus vizinhos. Deixou de ser uma liderança na América do Sul e na América Latina. Não tem uma política externa digna desse nome.

Tomou as piores posições sobre questões ambientais, de direitos humanos, de riscos à democracia, de ataques as instituições. É realmente um pária, e isso vai piorar se tiver postura leniente com a barbárie.

E o Itamaraty se contorceu para tentar se expressar sobre a Rússia sem usar as palavras-chave na presente situação: invasão e condenação. O Brasil não pode se esconder atrás do pretexto de que tem relações importantes com a Rússia para se omitir diante da brutal violação. O Itamaraty usou linguagens elípticas para evitar falar em invasão.

O momento é decisivo para a preservação da honra da diplomacia brasileira, da respeitabilidade do Itamaraty. As pessoas não pensam nisso, mas o Brasil é parte do Ocidente. Escolheu o Ocidente quando declarou guerra à Alemanha nazista e mandou tropas para Itália em 1944. Durante a Guerra Fria, quando aliado aos EUA. Esse pertencimento se deu até sob a égide de um governo ditatorial militar, capaz de conciliar na política externa o combate ao comunismo e ao então chamado terceiro mundo.


Raio-x | Roberto Abdenur, 79

Conselheiro do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais). Foi membro do Serviço Exterior brasileiro de 1963 a 2007, sendo embaixador no Equador, na China, na Alemanha, na Áustria e nos EUA. Como consultor, acompanhou câmaras de comércio e entidades empresariais. Entre 2011 e 2014, foi presidente-executivo do ETCO (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial)

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