Cartazes do Black Lives Matter são guardados por imigrante e viram acervo de museu nos EUA

Nadine Seiler preserva memória dos protestos antirracistas que ocuparam ruas do país em 2020

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Washington

Em meados de 2020, encurralado por protestos, o governo de Donald Trump mandou erguer uma barreira metálica impedindo que manifestantes se aproximassem da Casa Branca. A cerca virou um dos símbolos da fúria popular contra seu mandato —e de como o então presidente americano estava acuado.

Os manifestantes, que estiveram nas ruas por meses exigindo o fim da violência policial contra negros, não se intimidaram. Usaram a grade como suporte para expor centenas de cartazes com alguns dos slogans do movimento Black Lives Matters. Vidas negras importam, em português.

Cartazes dos protestos Black Lives Matter, em 2020, pendurados na cerca que protegia a Casa Branca - Robin Fader

Em janeiro de 2021, com a posse de Joe Biden e o esvaziamento dos protestos, o governo anunciou que iria retirar as barreiras. Foi uma excelente notícia para os manifestantes, exceto pelo fato de que, sem a grade, tampouco haveria cartazes; suas mensagens desapareceriam.

A ideia incomodou Nadine Seiler, 56. Essa imigrante de Trinidad e Tobago tinha passado meses na frente da Casa Branca vociferando contra o governo. Havia tomado para si a missão de organizar os cartazes e protegê-los do vandalismo de alguns dos apoiadores de Trump.

Fazia isso de maneira voluntária, sem receber nada. Deixou de lado seu trabalho remunerado e, com isso, atrasou o pagamento de sua hipoteca. Parecia que, de repente, tudo teria sido em vão.

Não foi. Seiler fotografou metodicamente a cerca, registrando onde cada cartaz estava colado. Depois, recolheu o acervo —mais de mil pôsteres— e levou tudo para um depósito. Transformou-se, assim, na inesperada arquivista de um momento importante da história dos Estados Unidos. Museus ao redor do país já demonstraram interesse nesse tesouro popular, e recentemente a icônica Biblioteca do Congresso incluiu alguns dos cartazes em uma coleção virtual permanente.

Um dos pôsteres exibidos diz, por exemplo, que "o silêncio dos brancos é uma violência". Outro estampa a frase "vidas negras importam" em cima da bandeira dos EUA. Um terceiro cartaz lembra o público de que "se importar" com a população negra é apenas o mínimo.

A história dessa arquivista de improviso é uma sequência de decisões instintivas e eventos inesperados. Seiler trabalhava como arrumadora profissional, ajudando pessoas a organizar suas casas. Ela decidiu se unir aos protestos porque sentia, na pele, a importância daquele movimento. "A história desse país é feita de brutalidade policial, de desumanização da população negra."

"Sei que, por ser negra, eu posso ter o mesmo fim que a Breonna Taylor", afirma, mencionando a jovem negra morta por policiais em março de 2020. Foi a morte de Taylor e de outros —em especial George Floyd— que enfureceu o país naqueles meses. Floyd foi assassinado em maio de 2020 pelo então policial Derek Chauvin, que ajoelhou em seu pescoço por quase dez minutos. "Eu não estava pensando na história com agá maiúsculo", Seiler conta. "Só queria estar naquele lugar."

Ela notou, em suas visitas diárias à grade diante da Casa Branca, que o lugar bem precisava de uma arrumação —justamente seu talento. "Queria garantir que os cartazes estivessem organizados, limpos, que as mensagens fossem claras." Ela também passou a proteger a cerca dos manifestantes pró-Trump que em alguns momentos apareciam para arrancar pôsteres. "Eles não queriam nossas mensagens bloqueando a visão da casa do seu 'Messias'", afirma.

Não é que ela se portasse como dona dos cartazes. Se alguém quisesse levar uma das mensagens para casa, Seiler não se opunha. Muitas pessoas fizeram isso ao longo dos meses de protesto. O que não podiam, diz, é desrespeitar a luta dos manifestantes e tentar silenciar —como de costume— sua voz.

A caribenha também testemunhou, por meses, como americanos vinham de todos os cantos do país para colocar suas mensagens na barreira de metal. Essa devoção a convenceu ainda mais da necessidade de organizar o acervo. "Queria proteger aquelas vozes", diz. Vozes, inclusive, de imigrantes como ela —gente que às vezes não se manifesta por receio de ser deportado.

Seiler começou a dividir os pôsteres por temas. Reuniu, por exemplo, todas as mensagens feministas em um canto. Em outro, os dizeres de "não consigo respirar", em menção ao assassinato de Floyd. Fez, com isso, que os cartazes contassem histórias para os visitantes. E a grade acabou virando um ponto turístico em Washington, chegando mais tarde às redes sociais.

A ideia de coletar aqueles cartazes começou antes mesmo da notícia da remoção da grade. Uma representante da Biblioteca do Congresso começou a ir aos protestos e oferecer sua ajuda. Outros museus entraram em contato, mas não enviaram representantes, devido à pandemia da Covid-19.

Depois que a barreira foi abaixo e Seiler virou a guardiã daqueles pôsteres, uma rede de ativistas e profissionais começou a se mobilizar para preservar aquela história. A biblioteca Enoch Pratt, em Baltimore, ofereceu seu scanner. Toda semana, a ativista dirige mais de 70 quilômetros para entregar os pôsteres que serão digitalizados. Alguns arquivos foram enviados para a biblioteca pública de Washington. Outros foram para a Universidade Howard, tradicional bastião da academia negra.

Todo esse trabalho é voluntário, feito em paralelo ao de arrumadora de lares. Ela arca, inclusive, com os custos do depósito e das viagens a Baltimore —tem recebido, no máximo, doações de alguns entusiastas da missão—, enquanto tenta regularizar seus boletos.

Seiler está, agora, reunindo uma comissão de pessoas para decidir o futuro do restante do acervo. A ideia é espalhar a mensagem ao máximo. Mas ela não quer, ao mesmo tempo, doar cartazes para instituições pomposas que vão deixá-los guardados no porão, sem jamais exibi-los.

"Eu quero contar nossa história, para que as pessoas entendam por que nós estamos lutando", diz.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.