CNN nos EUA vive incerteza após acusação contra Chris Cuomo e caso de presidente da rede

Investigação sobre assédio sexual envolvendo âncora irmão de ex-governador levou a demissão do executivo e caos no canal

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Nova York | The New York Times

No fim da tarde de 30 de novembro, Jeff Zucker, presidente da CNN mundial, chamou seu principal âncora e amigo Chris Cuomo para uma reunião no edifício da rede. Estava presente também a executiva-chefe de marketing —e parceira romântica secreta de Zucker—, Allison Gollust. Os dois tinham uma mensagem incômoda para dar.

Zucker disse ao âncora que a CNN o estava suspendendo devido às interações antiéticas com o irmão, o ex-governador de Nova York Andrew Cuomo. O âncora ficou chocado e ofereceu pedir demissão. Segundo pessoas com conhecimento da discussão, Zucker respondeu que Cuomo talvez pudesse retornar.

Chris Cuomo durante evento com a então pré-candidata democrata à Presidência dos EUA Elizabeth Warren
Chris Cuomo durante evento com a então pré-candidata democrata à Presidência dos EUA Elizabeth Warren - Mike Blake - 10.out.19/Reuters

Cuomo e Zucker eram confidentes, e o jornalista não se deu ao trabalho de consultar um advogado.

Menos de 24 horas mais tarde uma carta chegou à CNN. Era de uma advogada representando uma mulher que trabalhara com Cuomo na ABC News e dizia que ele a agredira sexualmente e tentara garantir seu silêncio usando-se de "um abuso de poder da CNN".

Um porta-voz de Cuomo nega as alegações, mas a carta desencadeou uma sequência de acontecimentos que em pouco tempo afetaria drasticamente uma das redes de jornalismo mais poderosas do mundo.

Até o fim daquela semana Zucker demitiria Cuomo, dizendo a ele que uma sequência de escândalos se tornara demais. Dois meses mais tarde, o próprio Zucker foi forçado a renunciar. Na última terça (15), a CNN anunciou a saída de Gollust.

Zucker atribuiu sua demissão ao fato de não ter levado a público seu relacionamento com Gollust, mas outras forças haviam criado as condições que levaram à sua derrocada.

A CNN caíra para o terceiro lugar na audiência das emissoras de jornalismo a cabo. Um investidor crucial criticara a programação da rede, descrevendo-a como opinativa. Zucker se desentendera com um alto executivo da empresa-mãe e criara inimigos poderosos.

Quando o âncora foi demitido, a firma de advocacia contratada para investigar seu comportamento voltou a atenção a Jeff Zucker —e sua gestão em que intimidade com fontes e funcionários era tanto uma marca registrada quanto um calcanhar de Aquiles. Sua saída repentina atirou o futuro da CNN no caos.

Cuomo espera arrancar dezenas de milhões de dólares da rede, âncoras estão em revolta e funcionários especulam se, sem Zucker, a Discovery Inc., que está em vias de se tornar a nova dona, vai promover mudanças abrangentes.

Na noite de terça, em memorando anunciando a renúncia de Gollust, Jason Kilar, executivo-chefe da empresa-mãe, disse que uma investigação interna "encontrou violações de políticas da empresa" de Cuomo, Zucker e Gollust. "Essa notícia é preocupante, decepcionante e, francamente dolorosa."

Ex-presidente mundial da CNN Jeff Zucker durante Mobile World Congress, em Barcelona
Ex-presidente mundial da CNN Jeff Zucker durante Mobile World Congress, em Barcelona - Lluis Gene - 26.fev.18/AFP

Uma festa de aniversário nos Hamptons

Os laços entre Zucker, Gollust e Chris Cuomo vinham de longe, envolvendo também Andrew Cuomo, que em agosto renunciou ao cargo de governador.

Zucker conheceu Gollust na NBC quando ela era uma jovem assessora de imprensa do Today e ele, produtor-executivo do programa. Conforme ele subiu na hierarquia, chegando a executivo-chefe da NBC Universal, os dois continuaram a trabalhar juntos.

Em 2011, Zucker deixou a rede, e Gollust conheceu Andrew Cuomo ao organizar uma festa para a namorada do político. O evento na praia nos Hamptons foi um sucesso tão grande que Cuomo a chamou para trabalhar com ele. No ano seguinte, ela se tornou diretora de comunicações do governador.

Alguns meses mais tarde, em janeiro de 2013, a CNN contratou Jeff Zucker, e Gollust deixou Albany para trabalhar com o antigo chefe, virando diretora de comunicações da emissora.

Seguindo um roteiro

A CNN enfrentava dificuldades, com índices de audiência em queda e programação considerada obsoleta. Na NBC, Zucker dera uma virada no Today, e triunfos se seguiram com shows como "O Aprendiz" e "Fear Factor" fazendo sucesso e ajudando a converter Donald Trump e Joe Rogan em marcos culturais.

Uma das primeiras criações de Zucker na CNN foi um programa matinal leve, New Day. Ele contratou para ser coapresentador um nome da ABC News que brilhara como repórter de guerras, Chris Cuomo.

Meses depois, limites éticos começaram a ser forçados: em dezembro de 2013, Chris entrevistou Andrew Cuomo sobre um acidente de trens no Bronx. Críticos de mídia alegaram que era impossível alguém falar sobre o irmão com imparcialidade —mais tarde Chris foi proibido de cobrir assuntos ligados a Andrew.

O New Day foi um sucesso modesto, mas Chris Cuomo era polarizador, e Zucker continuava leal. Em 2018 ele ofereceu ao jornalista um programa no cobiçado horário das 21h. Seu estilo combativo o tornava ideal para ironizar o então presidente Donald Trump no ar.

O Cuomo Prime Time não demorou a se tornar o programa de maior audiência da CNN, o sucesso fortaleceu o vínculo entre os dois e rendeu ao âncora um contrato de US$ 6 milhões por ano.

De olho na audiência

A chegada da pandemia turbinou os instintos hipercompetitivos de Zucker. Durante os anos Trump, ele levou a CNN a alcançar audiências recordes e lucros anuais de cerca de US$ 1 bilhão.

Andrew Cuomo vivia um momento especial. Seus pronunciamentos sobre a Covid eram calmos e informativos, um contraste marcante com as falas frequentemente confusas de Trump. Falou-se na possibilidade de ele ser candidato a presidente.

Então Chris Cuomo contraiu o vírus. Ele fez quarentena e transmitiu o programa do subsolo de sua casa; a audiência subiu mais ainda. Zucker então suspendeu a proibição de o âncora entrevistar o irmão. A partir de abril de 2020 os Cuomos passaram a refletir no ar sobre como o vírus perturbava a sociedade e suas vidas.

As interações começaram a parecer menos simpáticas depois de o jornal The Washington Post divulgar que o governador ajudara o irmão a ter acesso a testes de Covid, raros na época. A CNN defendeu o âncora, dizendo que ele "se voltou a quem pôde para buscar ajuda, como qualquer ser humano faria".

Uma noite, em março de 2021, Chris Cuomo disse algo na TV que ajudou a precipitar sua queda —e, mais tarde, a de Zucker. A procuradora-geral de Nova York acabara de anunciar que estava investigando alegações de assédio sexual feitas contra Andrew.

Com o governador enfrentando problemas, Zucker voltou a proibir o âncora de cobrir notícias sobre ele. Quando Cuomo explicou aos espectadores que ia manter distância do assunto, olhou diretamente para a câmera e denunciou o assédio. "Sempre me preocupei profundamente com essas questões."

A mulher que trabalhara com ele na ABC News assistiu incrédula. Ela disse ao NYT que ficou perturbada com as semelhanças entre o que viveu e o que aconteceu com as mulheres que acusaram o governador.

Em maio de 2021, o Post divulgou que Chris Cuomo vinha aconselhando a equipe do governador sobre como se distanciar do escândalo de assédio sexual. A CNN, que acabara de anunciar planos de fusão com a Discovery, disse que as conversas eram inapropriadas, mas não puniu o âncora.

Em 3 de agosto, a procuradora-geral de Nova York, Letitia James, divulgou relatório crítico sobre o assédio sexual cometido por Andrew Cuomo. O tema foi noticiado pela CNN ao longo do dia —até as 21h, quando Chris Cuomo foi ao ar. Uma semana mais tarde, o governador renunciou.

Logo denúncias sobre o Cuomo mais jovem começaram a vir à tona. Shelley Ross, antiga chefe dele na ABC, escreveu no NYT que ele a apalpara numa festa em 2005 —ele pediu desculpas. Executivos da CNN então pediram à empresa de advocacia Cravath Swaine & Moore que investigasse o assunto.

Encontro no escritório

A fatídica carta que chegou à CNN era de Debra S. Katz, advogada especializada em casos de assédio sexual. A mulher que trabalhara com Cuomo na ABC News relatou uma história que começou em 2011, quando ela era uma funcionária temporária. Um dia, após Cuomo lhe oferecer conselhos profissionais, a teria convidado para almoçar em seu escritório. Quando ela chegou, não havia comida. Em vez disso, ele a pressionou para fazer sexo e, quando ela recusou, foi agredida.

Mas a história não se resumiu a isso. Segundo a carta da advogada, anos depois, no auge do movimento #MeToo, Cuomo entrou em contato com a mulher, aparentemente do nada. Propôs realizar uma reportagem na CNN sobre a empresa na qual ela trabalhava como relações públicas. Ela tentou evitar qualquer contato com o jornalista, mas a CNN veiculou o material de qualquer maneira.

Segundo a advogada, a mulher, que ficou "profundamente traumatizada", não quer virar um joguete numa guerra interna entre Zucker, Chris Cuomo e a CNN e não dirá mais nada.

Um sinal claro

Dois dias depois de a carta ser enviada, Katz e um advogado da CNN combinaram que ela entregaria provas para substanciar as acusações da mulher. Antes disso, Zucker demitiu Cuomo.

Um dia depois o âncora contratou Bryan Freedman, advogado de Hollywood conhecido por conseguir indenizações milionárias. Em 5 de dezembro, ele enviou uma carta à CNN exigindo que a rede conserve todos os documentos ligados a quaisquer contatos entre qualquer funcionário da CNN e o gabinete do governador de Nova York.

Foi um sinal claro de que um elemento-chave da defesa será apontar que Zucker e outros na CNN teriam se comunicado com o político, como Chris, mas sem sofrer punições.

Pouco depois, um site de fofocas apontou que Zucker e Gollust mantinham um relacionamento romântico havia anos. O executivo contava com a lealdade dos âncoras e conquistara o respeito de muitos jornalistas por enfrentar Trump, que atacara a rede repetidamente. Mas no final de 2021 ele começou a cair no conceito de seus superiores, e a situação com Cuomo era só o tropeço mais recente.

Em novembro, John Malone, acionista da Discovery, disse: "Eu gostaria de ver a CNN voltar a praticar o tipo de jornalismo com o qual começou e a ter jornalistas de fato. Seria revigorante". A farpa levou a questionamentos sobre se os futuros donos da CNN procurariam implementar mudanças editoriais.

Além disso, os índices de audiência da rede estavam em queda, e Zucker mantinha um relacionamento tenso com Kilar. Em agosto de 2020 o executivo-chefe da WarnerMedia anunciou alterações na estrutura corporativa da CNN sem consultar o presidente da rede —que dias mais tarde faltou a uma reunião para comparecer à festa de 50 anos de Chris Cuomo.

'Cometi um errro'

No início de janeiro, a investigação da Cravath avançou, e o teor das perguntas começou a mudar. Os advogados perguntavam a funcionários da CNN sobre como Zucker havia lidado com a suspensão e a demissão de Cuomo, o que ele sabia sobre as interações do âncora com o irmão e se alguém tinha conhecimento de comunicações entre o presidente da rede e Andrew Cuomo.

Quando os advogados interrogaram Zucker e Gollust, perguntaram sobre o romance. O executivo disse que a relação se tornara sexual na pandemia. Ele não revelou o fato a ninguém dos recursos humanos nem a seus superiores. O caso violou o código de conduta da empresa.

Na segunda-feira, 31 de janeiro, Zucker faltou à reunião de pauta diária da CNN que costumava comandar. Também não foi às dos dias seguintes. Às 11h da quarta-feira, enviou um email a funcionários: estava renunciando, porque não revelou o relacionamento romântico desde o início. "Cometi um erro", escreveu.

Kilar procurara Zucker dias antes e lhe dissera que ele precisava deixar a CNN. Zucker pediu para permanecer até a fusão com a Discovery ser concluída, em alguns meses. Kilar disse não.

Emily Steel , Jodi Kantor , Michael M. Grynbaum , James B. Stewart e John Koblin

Tradução de Clara Allain

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