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Crise militar na Ucrânia inaugura a guerra na era das fake news

Biden e Putin adotam tática 'sincerona' que pode custar mais caro ao americano

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Moscou

O conflito em torno das fronteiras da Ucrânia, que opõe a Rússia de Vladimir Putin ao Ocidente de Joe Biden, inaugurou uma nova era de enfrentamento informativo sob a sombra das fake news.

Em vez da desinformação pura e simples, a arma apresentada é uma desabrida sinceridade de lado a lado. Putin tem movido tropas e equipamentos desde novembro passado a céu aberto, para qualquer satélite espião ou olheiro em solo ver.

O presidente Joe Biden, quando ainda era candidato em 2020, e seu colega Vladimir Putin
O presidente Joe Biden, quando ainda era candidato em 2020, e seu colega Vladimir Putin - Jim Watson - 17.jun.2020 e Grigori Dukor - 31.jan.2018/AFP

Como seria previsível, ele nega qualquer ideia de que quer invadir a Ucrânia. Ao mesmo tempo, em vez de fazer discursos sobre os direitos dos russos do Donbass (leste do vizinho), emitiu um ultimato claro aos aliados ocidentais: quer que eles desistam de absorver Kiev.

Era segredo de polichinelo, claro, mas foi colocado por escrito ao mesmo tempo que soldados se exercitavam em quatro frentes diferentes ao torno do território sob a caótica gestão de Volodimir Zelenski.

Do outro lado, Biden e alguns aliados têm denunciado cada um daqueles que acreditam ser um passo de Putin rumo à intervenção armada no seu vizinho. Desde janeiro, falam em uma "invasão iminente" e chegaram a dar datas: 16 de fevereiro, este domingo (20) ou "alguns dias depois".

No Conselho de Segurança das Nações Unidas, o secretário de Estado Antony Blinken enumerou as táticas que a Rússia poderia aplicar para arrumar um pretexto para a guerra. Quando civis começaram a ser evacuados de Donetsk e Lugansk, na sexta (18) o americano deve ter se sentido algo vingado.

Algumas horas antes, contudo, era Putin que fazia uma piada ao cortar a bola levantada por um repórter russo em entrevista ao lado do ditador amigo Aleksandr Lukachenko (Belarus), dizendo que não tinha visto a invasão do dia 16 na TV.

A narrativa, para usar o batido termo dessa era das fake news, sempre foi campo aberto. É assim desde as campanhas da Antiguidade, imbuídas por exemplo em Atenas pelo embate entre mitos e a tentativa de objetividade do primeiro grande cronista militar, Tucídides.

Num registro mais vulgar, basta assistir o mesmo noticiário na RT russa e na CNN americana. Na TV —uma delas na verdade— do Kremlin, Biden é ridicularizado e seu "dia da não invasão" virou mote. Num tom mais grave e preocupante, os incidentes de quinta e sexta no Donbass viraram "fuga de refugiados de bombardeios ucranianos".

Já na outra, a invasão é "iminente", "possível", há o "limiar da guerra". Comentaristas tratam Putin como uma espécie de anticristo determinado a acabar com o Ocidente, e o presidente russo se comporta como alguém que adora a brincadeira.

Ou não, e esse é o problema do jogo de espelhos e fumaça em curso no Leste Europeu. Seus movimentos à luz do dia, que naturalmente podem estar escondendo outros nas sombras do ciberespaço, por exemplo, chamam a atenção porque lhe dão a iniciativa e a possibilidade de montar o circo e, ao fim, sorrir e afirma que "não fiz nada como sempre disse".

Essa é a leitura mais benigna, claro, ainda que péssima para um Ocidente manietado. Putin pode simplesmente estar fazendo às claras tudo do que é acusado, confundindo assim mesmo analistas menos alarmistas, que duvidam da racionalidade de ir às vias de fato.

Mas o risco assumido pelos americanos parece maior. Manter a fervura máxima tem custo: a cada dia que a invasão não vem, a perda de credibilidade aumenta. Há um cheiro forte de Iraque-2003 com a sucessão de alertas sem comprovação mais sólida.

A essa altura, os EUA, assim como o Reino Unido, parecem apostar numa narrativa (de novo!) de que ao denunciar sem prova uma intenção russa que pode ter saído da cabeça de algum nerd analista na CIA, o Ocidente está barrando Putin.

Se isso vai colar no eleitorado, o pleito parlamentar de meio de mandato em outubro estará aí para apurar. Na Rússia, até aqui o discurso de Putin tem encontrado ressonância, e a maioria acredita que quem quer confusão é a Otan.

Além disso, há um dano colateral importante da tática americana: a Ucrânia. Segundo um porta-voz do partido Servo do Povo, de Zelenski, o país está perdendo até US$ 3 bilhões mensais desde janeiro pelo aumento dos prêmios de risco e taxas de empréstimos, além da fuga de investidores.

E a falta de comprometimento militar efetivo do Ocidente periga deixar Kiev na mão caso os gritos insistentes por fim revelarem um voraz lobo.

Ao fim, o problema é quando a desinformação "sincerona" de lado a lado começa a adernar para as vias de fato, como os tiros no Donbass começaram a sugerir. "Falsa bandeira" funcionará para convencer o público ocidental? "Provocações" servirão aos russos quando seus primos ucranianos começarem a morrer sob suas bombas?

É um novo território, no mais sério incidente militar desde que o dicionário Collins elegeu fake news como a palavra do ano, em 2017. Se mentira é inerente à aurora dos conflitos, como disse ou não (pois é) o escritor britânico Samuel Johnson (1709-84), ela ainda não foi testada nestsa escala na era em que foi elevada ao status de ciência aplicada.

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