Descrição de chapéu União Europeia Europa

França estuda 'fuga de cérebros' de muçulmanos, que estão no foco de eleição presidencial

Candidatos de direita veem imigrantes como ameaças; relatos de quem deixou país misturam raiva e resignação

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Norimitsu Onishi Aida Alami
Paris | The New York Times

A psique ferida da França é o personagem invisível de todos os romances de Sabri Louatah e da série de TV que ele escreveu. O escritor fala sobre seu "amor visceral, sensual" pela língua francesa e a ligação com sua cidade natal. E monitora de perto a campanha para as próximas eleições presidenciais.

Mas faz tudo isso na Filadélfia, cidade nos Estados Unidos que passou a considerar seu lar depois dos atentados de 2015 na França por extremistas islâmicos, que mataram dezenas de pessoas e traumatizaram profundamente o país. Conforme os sentimentos endureciam contra os muçulmanos, ele não se sentiu mais seguro. Um dia, levou uma cusparada e foi chamado de "árabe sujo".

Muçulmanos rezam do lado de fora de centro cultural em Rennes, na França, que havia sido pichado com mensagens e símbolos islamofóbicos, em abril de 2021
Muçulmanos rezam do lado de fora de centro cultural em Rennes, na França, que havia sido pichado com mensagens e símbolos islamofóbicos, em abril de 2021 - Jean-François Monier - 30.abr.21/AFP

"Compreendi que eles não iriam nos perdoar", diz Louatah, 38, neto de imigrantes da Argélia. "Quando você vive em uma grande cidade democrática na costa leste [dos EUA], fica mais em paz do que em Paris, onde está mergulhado no caldeirão."

Os três principais rivais do presidente Emmanuel Macron —que deverão obter quase 50% dos votos, segundo pesquisas— nas eleições de abril estão conduzindo campanhas contra imigrantes que ressaltam o temor de um país que enfrenta a ameaça civilizacional de invasores não europeus. A questão está no topo de sua agenda, apesar de a imigração na França hoje ser menor que na maioria dos países europeus.

O problema mal discutido é a emigração. Por anos, a França perdeu profissionais de formação elevada que buscavam dinamismo e oportunidade em outros lugares. Mas entre eles, segundo pesquisadores, está um número crescente de muçulmanos que dizem que a discriminação foi um forte fator: eles se sentiram forçados a sair por uma chuva de preconceito, perguntas incômodas sobre sua segurança e uma sensação de não pertencimento.

O fluxo passou despercebido por políticos e pela mídia, e os acadêmicos dizem que a fuga de cérebros demonstra o fracasso do país em oferecer uma via de progresso até para os mais bem-sucedidos de seu maior grupo minoritário —pessoas que teriam servido como modelos de integração.

"Hoje, elas contribuem para a economia do Canadá ou do Reino Unido", diz Olivier Esteves, professor no centro de ciência política da Universidade de Lille, que pesquisou a migração de 900 muçulmanos franceses e conduziu entrevistas profundas com 130 deles.

Esse grupo, estimado em 10% da população do país, ocupa um lugar estranhamente desproporcional na campanha presidencial —mesmo que suas vozes reais raramente sejam ouvidas. Isso não é apenas um indício das feridas persistentes infligidas pelos atentados de 2015 e 2016, mas também da longa luta da França sobre questões de identidade e seu relacionamento não resolvido com antigas colônias.

Eles estão sendo ligados à criminalidade e a outros problemas sociais por meio de expressões com segunda intenção, como "zonas de não França", usada por Valérie Pécresse, candidata de centro-direita que briga com a líder de ultradireita Marine Le Pen pelo segundo lugar atrás de Macron. O polemista Eric Zemmour, logo depois delas nas pesquisas, já disse que empregadores têm o direito de negar serviço a pessoas negras e árabes.

Louatah e outros que partiram falam com uma mistura de raiva e resignação sobre o país natal, onde ainda têm parentes e laços. Os lugares nos quais ele e outros se assentaram não são paraísos livres de discriminação, mas os entrevistados dizem que de todo modo sentiram maior oportunidade e aceitação lá. Alguns contam que foi fora da França que, pela primeira vez, o fato se serem franceses não foi alvo de questionamento.

"Eu sou francês, sou casado com uma francesa, falo francês, vivo como francês, amo a comida e a cultura francesas. Mas em meu próprio país não sou francês", afirma Amar Mekrous, 46, que foi criado em um subúrbio de Paris por pais imigrantes.

Achando opressiva a desconfiança contra muçulmanos franceses depois dos ataques de 2015, Mekrous se estabeleceu com a mulher e três filhos em Leicester, na Inglaterra. Em 2016, criou um grupo no Facebook para reunir pessoas como ele no Reino Unido, que hoje tem 2.500 membros. Os recém-chegados aumentaram antes do brexit, segundo ele, em sua maioria famílias jovens e mães solteiras que achavam difícil encontrar emprego na França porque usavam o véu muçulmano.

Só recentemente pesquisadores —como os na Universidade de Lille, mas também no Centro Nacional de Pesquisa Científica, principal instituição de pesquisa do governo— começaram a formar um retrato dos muçulmanos franceses que partiram.

Elyes Saafi, 37, executivo de marketing da financeira americanas StoneX em Londres, cresceu em Remiremont, no leste da França, onde a família se instalou depois de chegar da Tunísia nos anos 1970. Como os pais, ele acabou fazendo uma vida nova em um novo país. Na Inglaterra, conheceu a mulher, Mathilde, que é francesa, e encontrou uma diversidade descontraída que não poderia imaginar.

"Em jantares da empresa pode haver um bufê vegetariano ou halal, mas todo mundo se mistura", diz. "O CEO aparece, de turbante, e confraterniza com os empregados." Os Saafis sentem falta da França, mas decidiram não voltar —em parte por causa de preocupações com o filho de dois anos.

"No Reino Unido não tenho medo de criar uma criança árabe", diz Mathilde.

Em 2020, atos antimuçulmanos na França aumentaram 52% em comparação com o ano anterior, segundo queixas oficiais reunidas pela Comissão Nacional de Direitos Humanos. Os incidentes aumentaram na última década, com forte acréscimo em 2015, e uma investigação oficial em 2017 descobriu que rapazes percebidos como árabes ou negros eram 20 vezes mais propensos a ter a identidade checada pela polícia.

Candidatos a empregos com nomes árabes têm 32% menos probabilidade de serem chamados para uma entrevista, segundo um relatório do governo divulgado em novembro.

​Louatah, casado com uma economista francesa que dá aulas na Universidade da Pensilvânia, diz que espera retornar um dia ao país que recheia seus romances. Quando a série de TV baseada em sua obra "The Savages" [os selvagens] foi transmitida em 2019, tornou-se um sucesso imediato do Canal Plus —a obra imagina a França pela primeira vez conduzida por um presidente de origem norte-africana.

Mas, dois anos depois, Louatah passou a ver a série como "uma anomalia". Ele começou a escrever a segunda temporada, com uma trama focada na violência policial, um dos temas mais delicados na França, mas o programa não foi renovado por motivos que, segundo o autor, nunca foram esclarecidos. Um porta-voz do Canal Plus disse que a série foi planejada para uma única temporada.

Na Filadélfia, o escritor está se dedicando a um romance sobre o exílio de um país cujo nome não é citado.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.