Líbia fecha prisão para migrantes conhecida por violações de direitos humanos

Série de reportagens mostrou abusos e assassinatos ocorridos em centro de Al Mabani, em Trípoli

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Ian Urbina Joe Galvin
Washington | The Outlaw Ocean Project

Sem explicação do governo, fanfarra de grupos de ajuda humanitária ou cobertura da mídia nacional ou estrangeira, a prisão de migrantes mais notória da Líbia, Al Mabani, fechou oficialmente em 13 de janeiro de 2022.

Em sua vida útil de aproximadamente 12 meses, a prisão tornou-se um emblema da irresponsabilidade do sistema de detenção mais amplo da Líbia, onde estupros, extorsão e assassinatos eram comuns e bem documentados.

Al Mabani era importante para o mundo não apenas porque a ONU disse que crimes contra a humanidade estavam acontecendo lá, mas também porque sua existência e seu crescimento eram o resultado de políticas da União Europeia destinadas a impedir que migrantes cruzassem o Mediterrâneo e chegassem às costas europeias.

Vista aérea da prisão secreta de migrantes na Líbia, chamada Al Mabani (Credit: Pierre Kattar/The Outlaw Ocean Project. May 18, 2021)
Foto de drone mostra o pátio interno da prisão secreta de migrantes de Al-Mabani, na Líbia - Pierre Kattar/The Outlaw Ocean Project

Em dezembro do ano passado, The Outlaw Ocean Project, em colaboração com a revista The New Yorker e em parceria com a Folha de S.Paulo no Brasil, publicou uma investigação sobre Al Mabani e o amplo sistema de detenções nas sombras que a UE ajudou a criar.

A reportagem contou a história de Aliou Candé, um refugiado climático da Guiné-Bissau, que foi preso pela Guarda Costeira da Líbia financiada pela UE enquanto cruzava o mar Mediterrâneo para chegar à Itália. Ele foi enviado para Al Mabani e acabou morto pelos guardas da prisão poucos meses depois.

Do ponto de vista jornalístico, o fechamento de Al Mabani pode parecer uma conquista. Uma equipe de repórteres expôs extensos abusos na prisão, e o governo imediatamente fechou o local. Mas a história mais importante é menos encorajadora.

O fechamento silencioso de Al Mabani mostra a natureza sempre mutável do encarceramento na Líbia e como essa transitoriedade torna quase impossível proteger os detidos.

Os centros de detenção de migrantes abrem, fecham e reabrem de uma semana para a outra. Os detidos são movidos de um lugar para outro sem nenhum acompanhamento. Três mil pessoas são retiradas de uma prisão e, misteriosamente, apenas 2.500 descem do ônibus na prisão seguinte. Quem faz trabalho humanitário leva meses para obter permissão para visitas regulares a prisões como Al Mabani —apenas para ter que iniciar essas negociações novamente quando esses detentos são levados para uma prisão recém-criada.

A consequência é que as milícias podem, com confiança na impunidade, torturar, deter e sumir com refugiados indefinidamente.

O fechamento de Al Mabani também ilustra como o poder e a governança realmente funcionam na Líbia. O que determina a forma como os migrantes são tratados, onde são mantidos, por quanto tempo e se são libertados tem menos a ver com a lei ou imperativos humanitários e mais a ver com proteção e dinheiro.

Al Mabani provavelmente foi fechada não porque jornalistas revelaram que os guardas de lá se envolveram em crimes como o assassinato de Aliou Candé e a extorsão e tortura de muitos outros migrantes. É mais provável que Al Mabani tenha sido desativada por causa de uma luta política entre dois homens que disputam a direção da Diretoria de Combate à Migração Ilegal (DCIM) da Líbia, que gerencia o fluxo de migrantes capturados.

A detenção de migrantes na Líbia é um grande negócio e para os detidos tudo tem um preço: proteção, comida, remédios e, o mais caro de tudo, a liberdade.

Quando o general Al-Mabrouk Abdel-Hafiz perdeu sua cadeira de liderança no DCIM, a prisão de Al Mabani, administrada por sua milícia favorita, faliu. Um dia depois de Mabrouk perder o emprego, Al Mabani publicou sua última postagem no Facebook. Quando o novo diretor, Mohammed al-Khoja, assumiu o DCIM, o lucrativo fluxo de migrantes cativos foi redirecionado para a prisão Al-Sikka, instalação que ele administrava anteriormente. Uma porta-voz da ONU confirmou que muitos dos detidos de Al Mabani foram transferidos para Al-Sikka. O vencedor fica com os espólios.

O fechamento de Al Mabani também faz parte de um esforço maior do governo líbio para mover os centros oficiais de detenção para fora de Trípoli. As fugas de detentos são mais difíceis quando a prisão fica no meio do nada. A importunação de grupos de ajuda humanitária e jornalistas também é menos provável, já que o governo limita mais fortemente o movimento fora da capital.

Inaugurado no início de 2021, Al Mabani —que em árabe significa "Os Edifícios"— era notoriamente brutal. Nenhum jornalista jamais havia entrado na instalação, mas migrantes fugitivos contaram o que aconteceu lá, ocasionalmente respaldados por imagens de telefones celulares.

A violência atingiu seu pico em outubro de 2021, com um tiroteio em massa de migrantes durante uma fuga, alguns dias depois que as autoridades cercaram e detiveram arbitrariamente até 5.000 imigrantes de Gargaresh, uma comunidade próxima. "Alguns de nossos funcionários que testemunharam esse incidente descrevem migrantes feridos em uma poça de sangue no chão", disse Federico Soda, chefe do escritório da Organização Internacional para as Migrações na Líbia. Seis pessoas foram mortas. Outras duas dezenas ficaram feridas.

O padrão é claro. As milícias administram os centros de detenção pelo tempo que podem, e depois são fechadas quando os agentes no poder mudam ou a mídia lança muita luz sobre eles. No caso em questão, Al Mabani só foi criado para tirar detentos de outra prisão notoriamente violenta, Tajoura, depois que esta começou a chamar muita atenção.

Tajoura foi bombardeada em 2019, e investigadores revelaram que entre os migrantes mortos alguns haviam sido obrigados a fazer trabalho militar, como preparar armas. "O fechamento de centros individuais ou a centralização da detenção migratória fazem pouco para combater o abuso sistemático de refugiados e migrantes, destacando a necessidade de erradicar o sistema de detenção abusiva como um todo", disse a Anistia Internacional em um relatório de 2021.

A União Europeia tem demorado a assumir a responsabilidade pelo seu papel. Em janeiro, o Outlaw Ocean Project apresentou detalhes de sua investigação ao comitê de direitos humanos do Parlamento Europeu e destacou o amplo apoio da UE ao aparato de controle de migração da Líbia. Os representantes da Comissão Europeia discordaram da nossa caracterização da crise.

"Não estamos financiando a guerra contra os migrantes", disse Rosamaria Gili, diretora do Serviço Europeu de Ação Externa para a Líbia. "Estamos tentando incutir uma cultura de direitos humanos".

No entanto, apenas uma semana depois, Henrike Trautmann, representante da Comissão Europeia, disse aos legisladores que a UE forneceria mais cinco navios à Guarda Costeira da Líbia para reforçar sua capacidade de interceptar migrantes em alto-mar.

Mais navios significa mais prisões. No ano passado, mais de 32.000 migrantes foram presos pela Guarda Costeira da Líbia e devolvidos às prisões para migrantes do país. Com o apoio adicional da UE, é provável que esse número aumente em 2022. "Sabemos que o contexto líbio está longe de ser o ideal para isso", admitiu Trautmann. "Achamos que ainda é preferível continuar apoiando isso do que deixá-los por conta própria."

A nossa reportagem certamente desempenhou algum papel no fechamento de Al Mabani. Mas a maior lição desse evento diz respeito a como patrocínio e proteção se passam por governo na Líbia, como isso resulta em crimes contra a humanidade e como a UE continua a sustentar financeiramente esses abusos por meio de seu apoio à Guarda Costeira da Líbia.


Entenda a série

Este texto integra uma série produzida por The Outlaw Ocean Project, cujo diretor é Ian Urbina, em parceria com a Folha. O especial examina a colaboração da UE com a Líbia na detenção de migrantes que tentam chegar à Europa. O Outlaw Ocean Project, organização jornalística sem fins lucrativos com base em Washington, tem como foco problemas ambientais e de direitos humanos que ocorrem em alto-mar.

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