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'Moisés Negro' tem semelhanças com o Brasil em que Moïse foi morto

Livro de Alain Mabanckou relata longo processo de procura de personagem congolês

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São Paulo

Há poucas semelhanças entre o Moisés Negro, do romance de Alain Mabanckou, e Moïse Kabagambe, assassinado no Rio de Janeiro, em caso que provocou imensa e compreensível comoção.

Ambos se originam de dois países chamados Congo. O personagem de ficção veio do Congo Brazzaville, ou República do Congo. O refugiado congolês morto por linchamento, da República Democrática do Congo, que por um período se chamou Zaire.

O estranho, no entanto, é que os dois personagens atravessam um longo processo de procura. Moïse se refugiou no Brasil para escapar à violência de um conflito civil. O Moisés Negro é um revoltado que, indignado com lideranças pérfidas, assassina uma delas e acaba numa penitenciária construída, na cidade de Loango, no mesmíssimo local em que funcionava um orfanato do qual ele foi um dos moradores.

O jovem congolês Moise Mugenyi Kabagambe, 24, foi espancado até a morte na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio
O jovem congolês Moise Mugenyi Kabagambe, 24, foi espancado até a morte na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio - Facebook / Reprodução

Mas falemos a partir de agora apenas do Moisés Negro. Ele não tinha esse prenome quando, aos 13 anos, assistia às aulas de catecismo de um padre católico muito querido dos adolescentes e que era conhecido como Papai Moupelo. Foi o sacerdote quem disse sobre nosso herói, em idioma lingala, que "demos graças a Deus, porque o Moisés Negro nasceu na terra dos ancestrais".

É claro que o jovem procurou traçar um paralelo entre o apelido dado pelo padre e o personagem bíblico que liderou os hebreus para longe da escravidão a que eram submetidos pelos egípcios. Mas antes que ele pudesse satisfazer sua curiosidade, eis que Papai Moupelo desaparece, provavelmente assassinado com a cumplicidade do diretor do orfanato, que se chamava Dieudonné Ngoulmoumako.

Era um personagem esquisito, que vivia rodeado por aduladores que usavam chicotes para apaziguar os dormitórios dos pequenos órfãos. Mabanckou descreve Dieudonné como um estereótipo e que se entregava a caretas um tanto parecidas às do ditador fascista Benito Mussolini. É também uma maneira de entender que o romance, para aprofundar sua visibilidade, não hesita em passear pelo chavão. O diretor do reformatório é uma versão oposta à do padre católico que agradava profundamente as crianças.

Sem o padre e com Dieudonné, dois episódios singulares estão para ocorrer. O diretor é precedido pela entrega de um misterioso caixote repleto de lanços vermelhos. E o próprio diretor se encarrega de anunciar, com solenidade, que o país acaba de adotar nada mais nada menos que "o socialismo científico".

As coisas estão prontas para desandar de vez. No caso do Moisés Negro, é o rumo inexorável à marginalidade moral e econômica. Uma curiosidade. Quando publicado, em 2015, o romance trazia o título em francês "Le Petit Piment" (o pimentinha). É esse o apelido com o qual nosso personagem circula para dormir nas dependências de um mercado —mas é preciso acordar às 4h, porque os lojistas estarão chegando para acompanhar a entrega das mercadorias— ou então para praticar pequenos e grandes crimes —furtar pneus ou bicicletas motorizadas ou bater a carteira dos brancos.

A sociedade pela qual percorrem o Pimentinha e seus amigos de marginalidade tem semelhanças com o Brasil, na medida em que nem todas as engrenagens funcionam, e as virtudes cívicas se confundem com o moralismo rasteiro —como a melhora espiritual dos congoleses por meio da eliminação física das prostitutas. Nesse conjunto de operações, quem ganha estatura é o próprio romancista.

Ele usa amplamente um outro recurso também banal entre brasileiros: o de transformar em nome próprio o veículo motorizado que pertence a determinada pessoa. É assim, por exemplo, que determinada cafetina é conhecida por Fiat 500.

Alain Mabanckou tem uma maneira simples de construir frases capazes de fornecer um material ficcional bastante complexo. Não existe mais, em sua geração de escritores, o projeto de imitar tendências das antigas metrópoles europeias ou conviver com modelos de romance que não tragam uma extrema originalidade.

Por fim, ele se mostra ao público com o luxo gráfico e a edição caprichada de uma das mais bem-sucedidas experiências editoriais brasileiras, a da editora Tag, de Porto Alegre (em coedição com a Malê). Conhecer Mabanckou por intermédio dela é, gráfica e literariamente, muito prazeroso.

Moisés Negro

  • Preço R$ 62,90
  • Autor Alain Mabanckou
  • Editora Tag/Malê
  • Págs. 223
Erramos: o texto foi alterado

O antigo Zaire é hoje a República Democrática do Congo, não a República do Congo (ou Congo Brazzaville), como dito em versão anterior deste texto.

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