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Olimpíadas voltam a Pequim com China mais combativa e menos interessada em agradar

Abertura celebrada em 2008 consolidou projeção, mas pressão internacional marca Jogos em 2022

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São Paulo

"Herói de conflito na fronteira no vale de Galwan carrega tocha dos Jogos Olímpicos de 2022", publicou o Global Times, jornal ligado ao Partido Comunista Chinês.

O coronel Qi Fabao é apenas um dos 1.200 chineses que carregarão o símbolo das Olimpíadas até a abertura dos Jogos de Inverno de Pequim, nesta sexta (4). Mas a escolha de um militar que comandou tropas no confronto mais sangrento em décadas na fronteira com a Índia, em 2020, bastou para que o país vizinho se juntasse ao boicote diplomático de Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e aliados.

"É de fato lamentável que o lado chinês tenha escolhido politizar um evento como as Olimpíadas", disse o Ministério das Relações Exteriores indiano nesta quinta-feira (3), ao anunciar que o principal diplomata em Pequim não vai participar da cerimônia de abertura.

Tibetanos protestam em frente ao Comitê Olímpico Internacional, na Suíça, contra as Olimpíadas de Inverno de Pequim - Valentin Flauraud/AFP

O episódio é representativo de como a China que recebe os Jogos de Inverno em 2022 é diferente do país que sediou os Jogos de Verão em 2008, celebrados à época como o ápice de um processo de abertura iniciado três décadas antes. Quatorze anos depois, o país recebe outro grande evento no papel de segunda economia do mundo e fechado como não se via há mais de 40 anos, devido à pandemia.

"Celebrar um militar envolvido em um incidente violento com um grande vizinho como a Índia é politicamente complicado. E é simbólico das dificuldades diplomáticas de agora e de uma espécie de arrogância chinesa", diz Maurício Santoro, professor de relações internacionais da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Para o professor da Universidade de São Paulo Felipe Loureiro, dois principais fatores separam a China de 2008 da de 2022: o país à época não representava ameaça à condição de principal potência global dos EUA e não tinha a projeção internacional que tem hoje sobre África, América Latina, vizinhos na Ásia e mesmo sobre a Europa.

É isso o que explica o aumento das pressões sobre o país, na avaliação de Li Xing, professor de relações internacionais na Universidade de Aalborg, na Dinamarca. "A compreensão nacional da força da China é diferente", resume ele, que aponta que há 14 anos o país ainda estava desenvolvendo sua indústria, e hoje é a principal potência comercial do mundo, maior exportador de produtos de alta tecnologia, maior credor e dono das maiores reservas de moeda estrangeira.

"Hoje a China é o maior investidor e maior parceiro comercial de muitas partes do mundo, especialmente no Sul Global. E a Europa e os EUA reagiram à rapidez do crescimento chinês usando problemas internos como uma maneira de demonizar o país."

Se em 2008 a China já era questionada pela repressão em regiões como o Tibete, a desconfiança cresceu exponencialmente após a ascensão do atual líder, Xi Jinping, em 2012, com o aumento da repressão em regiões como Hong Kong e Xinjiang —berço da minoria étnica uigur, no extremo oeste do país.

Quando estudava em Wuhan, na região central da China, Rayhan Asat lembra-se de acordar cedo para "genuinamente torcer" pelo bom desempenho do país em Pequim-2008. "Quatorze anos depois, estou protestando contra o fato de a China sediar os Jogos [de Inverno], porque o país sequestrou meu irmão e o submeteu a tortura, junto da minha família", diz ela à Folha.

Nascida em Urumqi, capital de Xinjiang, Asat, chinesa de origem uigur, ela se mudou para os EUA logo após os Jogos de 2008, para concluir os estudos na Universidade Harvard, mas engajou-se mesmo na causa uigur há seis anos, depois que seu irmão foi preso. Hoje, é advogada especialista em direitos humanos e pesquisadora da Universidade Yale.

"Minha família nunca pode visitá-lo. Meu irmão está sendo torturado em uma solitária na cidade de Aksu, longe de casa. Devido ao meu ativismo, permitiram que ele conversasse com minha família por vídeo, em uma chamada feita numa base de polícia altamente monitorada, e obrigaram que eles falassem em chinês."

Além de Xinjiang e Hong Kong, Pequim é criticada pelos planos de reanexar Taiwan, que o Partido Comunista considera uma província rebelde, mas que na prática é um país independente, com eleições, economia própria e aliados externos —EUA entre eles. Na política chinesa, a reanexação da ilha é uma espécie de desafio final para reconstrução do país após o chamado século da humilhação, entre meados dos séculos 19 e 20, quando foi invadido e arrasado por diferentes países, como Reino Unido e Japão.

Loureiro lembra que é uma relação similar à que a Rússia tem com a Crimeia, península anexada da Ucrânia em 2014. Não à toa, a China tem acompanhado o desenrolar das tensões na Ucrânia, e Xi deve se encontrar com o presidente russo, Vladimir Putin, nesta sexta.

"Xi não se encontra [pessoalmente] com um líder de Estado estrangeiro há dois anos, isso é bastante significativo", diz Loureiro. Segundo ele, Pequim vê na atuação de Washington na Ucrânia tendências que poderiam atrapalhar alianças que a China vem tentando construir na Ásia, sem falar em questões internas —evidentemente o caso de Taiwan. De todo modo, ressalta que uma aliança entre China e Rússia não deve ser automática caso Moscou de fato invada a Ucrânia.

Xi não deixa o país desde o começo da pandemia, que eclodiu na China e é controlada internamente até aqui com a estratégia de Covid zero, de não tolerar contaminações e isolar cidades inteiras para conter a disseminação do vírus.

A sustentabilidade da política tem sido criticada —foi elencada como risco político número 1 deste ano pela consultoria Eurasia, por exemplo. Mas, mais uma vez, a China não tem se importado e tem números a mostrar: são, oficialmente, menos de 5.000 mortos pela doença em dois anos, ante 894 mil nos EUA.

Para evitar novos surtos, especialmente com o avanço da variante ômicron, mais transmissível, a organização dos Jogos dobrou a aposta e isolou as delegações em bolhas, —muito diferente da festa de Pequim há 14 anos. Mais uma vez, a China de 2022 não lembra a de 2008.

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