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Rússia forças armadas

Presidente da Ucrânia quer Forças Armadas 50% maiores, mas nega guerra com Rússia

Comediante Zelenski morde e assopra para tentar se equilibrar na crise com o vizinho

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São Paulo

No centro da pior crise de segurança na Europa desde 2014, com quatro frentes de seu território sob a mira de tropas da Rússia, o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, anunciou nesta terça-feira (1º) que pretende expandir em 50% suas Forças Armadas.

Ao assinar o decreto autorizando mais 100 mil soldados nos próximos três anos, com aumentos de salário, o presidente ao mesmo tempo disse que isso ocorria "não porque nós teremos uma guerra logo, mas para que tenhamos paz no futuro".

Boris e Zelenski durante entrevista coletiva após reunião no palácio presidencial de Kiev
Boris e Zelenski durante entrevista coletiva após reunião no palácio presidencial de Kiev - Peter Nicholls/Pool/AFP

A ambiguidade ante a questão russa é a marca de Zelenski, um comediante que protagonizava uma série na qual ele era um presidente acidental de seu país e que, num exercício de metalinguagem reversa, ascendeu meteoricamente na vida real ao poder.

Em 26 de novembro do ano passado, quando as Forças Armadas da Ucrânia denunciavam a escalada militar russa nas fronteiras, com a validação dos serviços de inteligência dos Estados Unidos, Zelenski disse: "Há uma ameaça hoje de que poderá haver guerra amanhã".

Ele seguiu gritando lobo, para ficar na fábula de Esopo, até o fim de 2021. A crise então escalou para um embate internacional de grande porte, com Washington e Moscou decidindo o futuro de uma nação europeia em mesas de negociação de Genebra e de Bruxelas.

Trinta anos após o fim da Guerra Fria, o cenário não poderia ser de maior déjà-vu, ainda mais com a inapetência europeia para lidar com o problema. Zelenski adotou um rumo contrário desde a virada do ano: passou a dizer que não há risco iminente de guerra e que o Ocidente precisa evitar pânico e histeria em torno da Rússia.

Isso pode ser lido de duas maneiras, algo opostas mas também complementares. Antes, um preâmbulo: Zelenski tem popularidade baixa e viu o rival que derrotou em 2019, o ex-presidente Petro Porochenko, voltar ao país apesar do risco de ser preso sob acusação de traição.

Porochenko foi o líder que emergiu do movimento que derrubou o governo pró-Kremlin em 2014, na gênese da crise atual. Bilionário, ele busca se reposicionar. De uma forma ou de outra, o presidente ucraniano trabalha sob forte pressão interna também.

Assim, é possível que lide com a percepção de que é uma marionete do Ocidente na briga com Vladimir Putin, o que levou a suas queixas. Isso tentaria mostrar alguma autoridade à elite ucraniana.

Na linha contrária, a mesma elite hoje alimenta um forte sentimento contrário à Rússia. Mas nem por isso quer ver seu país envolvido em um conflito fratricida que não terá como vencer militarmente, sugerindo que novas concessões territoriais talvez sejam inevitáveis.

Segundo a Folha ouviu de diplomatas ocidentais em Kiev e Moscou, essa percepção de custo da guerra tem se tornado majoritária em círculos mais elitistas das capitais nos dois países.

Esse cenário também justifica a ideia de um Zelenski paz e amor, por assim dizer, talvez disposto a dar a Putin algum símbolo de vitória diplomática, como a aceitação dos termos dos acordos de paz de 2015 no Donbass (leste ucraniano), abrindo caminho para a desmobilização russa.

O problema é que sua margem de manobra é ínfima, e o anúncio de que poderá montar uma espécie de aliança de segurança com Polônia e Reino Unido sugere que outras opções estão em jogo.

Isso ficou claro no tom adotado por Zelenski ao encontrar-se, também nesta terça, com o premiê britânico, Boris Johnson, em Kiev. Se não voltou ao palanque antirrusso, fez questão de usar tintas sombrias. Disse que a Ucrânia irá "lutar até o fim" e que "essa não será uma guerra entre Ucrânia e Rússia, será uma guerra europeia, uma guerra total".

Há limites de outra ordem. A ideia de aumentar as Forças Armadas pode até soar popular, mas é preciso ver de onde virá o dinheiro. De 2010 a 2020, o gasto com defesa da Ucrânia quase triplicou, de 1,1% do Produto Interno Bruto para 3,1%, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (Londres).

Houve um enorme aumento em termos reais, claro, em 2014 e 2015 (57% e 30%, respectivamente), na esteira da crise da Crimeia e da guerra civil, mas o ritmo já baixou para quase um dígito. Hoje há 209 mil militares no serviço ativo ucraniano.

Se perder as taxas de trânsito de gás russo pelo país, algo como US$ 2 bilhões anuais, com a abertura do novo gasoduto Nord Stream 2 no mar Báltico, o espaço fiscal é ainda mais exíguo.

Com todas essas variáveis, Zelenski morde e assopre na tentativa de se equilibrar no cargo enquanto a crise se desenrola.

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