Putin diz aceitar negociar, mas que seus interesses são inegociáveis

Russo mantém iniciativa na crise com a Ucrânia, que pede para seus cidadãos deixarem o país vizinho

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Rostov-do-Don

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse nesta quarta-feira (23) que está disposto a negociar uma solução diplomática para a crise com o Ocidente, desde que respeitados os "interesses e a segurança" de seu país. Para ele, "inegociáveis".

"Ele fala isso porque estamos aguentando bem", diz o atendente de balcão Alexei (nome fictício), 28, após ouvir o discurso de Putin em um vídeo de TV estatal em seu celular. O presidente celebrava, com uma mensagem gravada, o Dia do Defensor da Pátria.

Caça Su-27 da Força Aérea da Ucrânia durante exercício em base não identificada no país
Caça Su-27 da Força Aérea da Ucrânia durante exercício em base não identificada no país - Forças Armadas da Ucrânia/AFP

Alexei trabalha eventualmente em um símbolo dessa resiliência russa às sanções econômicas, que foram aumentadas pela enésima vez pelo presidente Joe Biden, por países europeus e até Japão e Austrália devido à decisão de Putin de reconhecer as autoproclamadas repúblicas separatistas russas do leste da Ucrânia.

Trata-se da rede de padarias hipsters Keks, onipresente com 14 filiais em Rostov-do-Don, capital da região contígua às áreas rebeldes a oeste. Ela cresceu na esteira das primeiras sanções ocidentais, de 2014, quando Putin interveio no processo de ocidentalização da Ucrânia anexando a Crimeia e fomentando a guerra civil no leste.

"Foi uma época bem ruim, havia muita gente vindo para cá, e muitos aqui têm parentes em Donetsk e Lugansk", diz. Hoje, ainda não viu nenhum dos 60 mil refugiados do Donbass. Seja como for, a partir daí não se encontrava mais queijo francês e outros produtos europeus no mercado russo, e os comerciantes locais passaram a incentivar a produção local.

Assim, o croissant com salmão do Pacífico russo e cream cheese de Krasnodar (R$ 30, como se estivesse em uma rua de Pinheiros, São Paulo) da Keks é o famoso produto nacional.

Ainda é preciso ver o tamanho do estrago proposto por Biden, principalmente, acerca do que ele disse que seria um estrangulamento do financiamento de longo prazo da dívida russa, com a proibição de comércio de títulos do país no mercado secundário para operadores americanos.

A tensão seguiu na manhã desta quarta (23, madrugada no Brasil), com Kiev pedindo que seus 2,5 milhões de cidadãos morando na Rússia deixem o país vizinho, dado o clima de animosidade. Na noite anterior, a Rússia havia dito que retiraria diplomatas da Ucrânia, apesar de os países manterem ainda relações.

As Forças Armadas ucranianas também anunciaram a mobilização de seus reservistas, contingente que conta com cerca de 200 mil pessoas de 18 a 60 anos e ao qual se somaram centenas de civis ao longo dos últimos meses, com a escalada da tensão.

Um estado de emergência nacional de, a princípio, 30 dias, foi aprovado pelo Parlamento ucraniano para todo o país, exceto para as duas regiões no leste, onde já há uma medida do tipo em vigor desde 2014. Nessa situação, o governo pode impor restrições de deslocamento, na distribuição de informações e no que é divulgado na mídia, além de introduzir conferência de documentos de cidadãos.

Por ora, Putin mantém a iniciativa na crise, iniciada por ele com a mobilização de talvez 150 mil a 190 mil soldados em torno da Ucrânia desde novembro —os americanos repetiram nesta quarta o aviso de que veem uma "invasão potencialmente próxima", com, segundo uma autoridade disse sob anonimato ao New York Times, 80% das tropas dentro ou próximo do vizinho prontas para a ação, só aguardando a ordem.​

Além de querer resolver o status das áreas russófonas do leste, que têm 800 mil de seus quase 4 milhões de habitantes com passaporte de Moscou, o presidente deitou à frente dos EUA seu cardápio de demandas.

As centrais: vetar Ucrânia, Geórgia, Moldova e outros países ex-soviéticos na Otan (aliança militar ocidental) e, presumivelmente, na União Europeia; recuar as forças ofensivas nos 14 países que já foram incorporados; negociar questões de segurança como posicionamento de mísseis e transparência de manobras bélicas.

Apenas o último tópico foi aceito por Biden e pela Otan, como seria previsível, levando ao impasse atual.

No discurso, Putin manteve o tom de desafio misturado com abertura, visando pressionar seu colega ucraniano, Volodomir Zelenski, que na noite de terça (22) havia feito o mesmo: prometeu negociar ao mesmo tempo que mobiliza a população para o risco de uma invasão russa.

"Nosso país está sempre aberto a um diálogo aberto e honesto para encontrar soluções diplomáticas para os problemas mais complexos. Não obstante, os interesses e a segurança de nossos cidadãos são inegociáveis", afirmou.

No mais, Putin manteve a cantilena militarista, destacando que "continuaremos desenvolvendo sistemas avançados de defesa, incluindo do tipo hipersônico e baseado em novos princípios físicos, e expandiremos o uso de tecnologias digitais e inteligência artificial".

"Essas são as armas do futuro", disse o russo, com razão. Hoje, o arsenal de mísseis hipersônicos (que voam a mais de cinco vezes a velocidade do som) de Moscou é o mais disponível do mundo. A China está avançada em testes, mas não dispõe de sistemas operacionais, e os EUA estão bastante atrás na corrida.

O discurso de Putin ocorre em um dos feriados sagrados do calendário de datas relativas à vitória soviética na Segunda Guerra Mundial, que, na Rússia, se chama Grande Guerra Patriótica e começou com a invasão nazista dos comunistas, em 1941, dois anos depois de seu início na Europa.

O presidente reescreveu essa história de forma a acomodar as aberrações da ditadura soviética com o inegável heroísmo de um povo que perdeu 27 milhões de pessoas, quase 40% do total de caídos no mundo, no conflito. O fez com aparente sucesso: para o jovem atendente de balcão, a guerra "fez a Rússia ser o que é".

Ele, contudo, é cético acerca da necessidade de mais derramamento de sangue. Acredita que Putin vai limitar sua ação no Donbass e que não vai tentar conquistar Kiev como trombeteiam líderes ocidentais todo o dia. Há lógica nesse raciocínio, mas ele depende de fatores diversos: primeiro, o que presidente de fato quer. Segundo, se ele irá militarizar o Donbass, como parece previsível, e até qual fronteira.

Se for dentro das atuais, até a União Europeia já sinalizou que a vida é assim mesmo. Se quiser recuperar as fronteiras históricas das duas províncias ucranianas, terá de comer território hoje nas mãos de Kiev. Aí, a invasão de fato vira uma ação de direito, violando no caso o internacional de forma mais acintosa.

Putin, contudo, conta com a inapetência ocidental até aqui de ir além de sanções econômicas. Talvez felizmente, dado que uma guerra em que ambos os lados têm armas nucleares nunca é uma boa ideia —menos para a Ucrânia.

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