Putin flerta com América Latina para ampliar influência em meio a crise na Ucrânia

Presidente russo se encontrou com Bolsonaro e Fernández e conversou com líderes autoritários de Venezuela, Cuba e Nicarágua

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Jack Nicas Anton Troianovski
Rio de Janeiro e Moscou | The New York Times

Em meio à pressão sobre a vizinha Ucrânia nas últimas semanas, o presidente Vladimir Putin também está ocupado tentando expandir a influência da Rússia a milhares de quilômetros de distância, na América Latina.

Ele falou com o ditador da Nicarágua Daniel Ortega pela primeira vez desde 2014, ligou para os líderes da Venezuela e de Cuba e recebeu o presidente da Argentina, Alberto Fernández, que prometeu durante a visita ao Kremlin reduzir a dependência de seu país dos Estados Unidos. Nesta quarta-feira (16), reuniu-se também com Jair Bolsonaro (PL).

O brasileiro manteve a viagem apesar dos repetidos pedidos de autoridades americanas para que ele adiasse a ida enquanto o Ocidente tenta pressionar a Rússia a respeito da Ucrânia.

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, e seu homólogo russo, Vladimir Putin, em Moscou - Alan Santos - 16.fev.22/Presidência da República

A enxurrada de diplomacia pessoal dirigida à América Latina por Putin durante o período de maior risco de seu mandato com frequência se baseia em laços que remontam à Guerra Fria e lança luz sobre a natureza global de suas ambições: exercer influência mesmo em regiões distantes. Ele está reforçando o engajamento e formando laços com uma faixa em expansão do Ocidente —inclusive com países como Brasil e Argentina, tradicionalmente próximos de Washington.

A operação começou quando Putin ameaçou tomar "medidas técnico-militares" não específicas se não obtiver garantias de segurança sobre o Leste Europeu que exige de EUA e Otan. Autoridades do Kremlin deram sugestões de que tais medidas poderiam envolver mobilizações militares no Ocidente —levando analistas e a mídia estatal a especular febrilmente que as ações poderiam incluir medidas audaciosas como o envio de mísseis nucleares para países amigos na América Latina.

Como sempre, as verdadeiras intenções de Putin são difíceis de entender. Esse gesto pode ser uma simulação, uma forma de complicar a reação do Ocidente à ameaça de invasão da Ucrânia. Ao mesmo tempo, os líderes latinos têm suas próprias agendas e podem estar usando Putin para adquirir influência sobre os EUA —que, junto com a China, ainda exercem uma influência muito maior na região.

Mas a recente diplomacia é um lembrete de que, para o russo, um objetivo mais amplo é primordial em sua política externa: trazer o país de volta à posição de grande potência capaz de desafiar os EUA.

"Putin vê a América Latina como uma área ainda importante para os americanos", diz Vladimir Rouvinski, professor da Universidade Icesi em Cali, na Colômbia, que estuda as relações entre Rússia e América Latina. "Isso é reciprocidade pelo que está acontecendo na Ucrânia."

O flerte de Putin é elaborado há anos. Ele soube aproveitar laços da era soviética, ressentimentos locais e caprichos de determinados líderes. Durante a pandemia, enquanto os países ricos acumulavam vacinas contra a Covid-19, o Kremlin aproveitou outra oportunidade: em pelo menos cinco países latino-americanos (Argentina, Venezuela, Nicarágua, Bolívia e Paraguai), a Sputnik V foi a primeira a chegar.

"Você estava lá quando o resto do mundo não estava", disse Fernández a Putin.

O Ministério das Relações Exteriores da Rússia disse que a América Latina "foi e continua sendo para nós uma região de boa vontade política, oportunidade econômica, proximidade cultural e mentalidade semelhante". Segundo a pasta, "a Rússia nunca participou da colonização da região, da exploração de seus povos, nem de conflitos, guerras ou outros usos da força".

Apesar dos esforços russos, EUA e China têm laços econômicos muito maiores com a região. Em 2019, a América do Sul exportou US$ 5 bilhões para a Rússia, comparados com US$ 66 bilhões para os americanos e US$ 119 bilhões para os chineses.

A influência de Pequim, em particular, aumentou graças ao financiamento de dezenas de bilhões de dólares para projetos de infraestrutura, de um metrô elevado na Colômbia a uma estação espacial da Argentina.

A especialidade da Rússia é o apoio político a países que estão ficando isolados no cenário global. Putin tem sido uma tábua de salvação diplomática para os líderes autoritários de Venezuela, Cuba e Nicarágua. E para Bolsonaro, que criticou duramente a China e questionou a vitória eleitoral do presidente Joe Biden, Putin estendeu um convite quando parecia que muitos outros países não o fariam.

Depois da derrota de Donald Trump, Bolsonaro começou a pedir às autoridades americanas um convite para visitar Washington ou pelo menos um telefonema do novo presidente, segundo dois altos funcionários dos EUA que insistiram no anonimato. Ele teria alertado que se não tivesse resposta de Biden buscaria marcar uma cúpula com outra potência mundial.

Putin na época estava fazendo propostas mais firmes. Os dois presidentes discutiram uma potencial expansão do comércio e acordos sobre ciência e segurança, segundo as autoridades americanas.

Questionada recentemente sobre a falta de contato entre Biden e Bolsonaro, Jen Psaki, secretária de imprensa da Casa Branca, apontou conversas entre o secretário Blinken e seu homólogo brasileiro.

Ainda assim, o presidente brasileiro enfrentou intensas críticas pela viagem, inclusive de aliados. "Acho errado de várias maneiras", diz Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro até o ano passado. "Em outras circunstâncias, tudo bem. Mas com a crise iminente, não."

Quando perguntado em meados de janeiro sobre a possibilidade de a Rússia colocar infraestrutura militar na Venezuela ou em Cuba, um vice-chanceler russo disse que não descartaria nada. Em poucos dias, Putin manteve ligações com os líderes de Venezuela, Cuba e Nicarágua —conversas, segundo o Kremlin, que confirmaram a "parceria estratégica" desses países com a Rússia.

O Departamento de Estado americano descartou conversas sobre possíveis desdobramentos russos como "bravata". "Se virmos algum movimento nessa direção, responderemos rápida e decisivamente", disse o porta-voz do departamento, Ned Price.

Analistas não acreditam que Putin envie armas para a região, em parte porque isso poderia abalar a boa vontade que trabalhou para criar em toda a América Latina. Ainda assim, a Rússia tem sido fundamental para armar aliados mais próximos na região. Moscou vendeu armas e tanques para Cuba e Nicarágua, aeronaves e sistemas antimísseis para a Venezuela —com quem também realizou exercícios militares bilaterais.

Autoridades dos EUA acreditam que o Kremlin está ajudando os militares da Venezuela, além de usar o país para operações de inteligência e lavagem de dinheiro.

Os americanos também estão preocupados com os esforços russos para interferir na eleição da Colômbia em maio, possivelmente para ajudar o candidato de esquerda Gustavo Petro, que poderia ser um parceiro de negociação mais amigável para Putin do que o atual governo de direita. Autoridades dos EUA já observaram operações russas online tentando semear agitação na América do Sul.

Mas a curto prazo, segundo analistas, o benefício mais importante será o apoio diplomático.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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