Descrição de chapéu The New York Times Rússia

Putin usa mídia estatal para construir explicação para invasão da Ucrânia

Versões em que a Rússia age contra agressão ucraniana e ocidental são noticiadas como 'momento histórico'

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Anton Troianovski
Moscou | The New York Times

Inclinado na cadeira, com a gravata vermelha torta, seu discurso em "staccato", o presidente russo Vladimir Putin fez um pronunciamento na segunda-feira (21) que parecia um chamado à guerra.

Foi também o apogeu de uma avalanche de propaganda orquestrada pela mídia estatal nos últimos dias —uma clara demonstração de como o Kremlin pode usar seu domínio das ondas de rádio e TV para depositar as bases de uma decisão política que pode causar sofrimento generalizado.

Moradores que deixaram os territórios separatistas no leste da Ucrânia assistem, em hotel em Taganrog, na Rússia, ao pronunciamento de Vladimir Putin em que ele afirmou que iria reconhecer as áreas rebeldes como independentes
Moradores que deixaram os territórios separatistas no leste da Ucrânia assistem, em hotel em Taganrog, na Rússia, ao pronunciamento de Vladimir Putin em que ele afirmou que iria reconhecer as áreas rebeldes como independentes - Serguei Ponomarev - 21.fev.22/The New York Times

Na terça (22), o mercado de ações russo caiu, o que o deixou cerca de 20% menor em uma semana, enquanto as empresas se preparavam para novas e prejudiciais sanções ocidentais. E os custos potenciais, muito mais trágicos, se Putin for em frente com uma invasão da Ucrânia, ainda pareciam incalculáveis.

Para milhões de russos que assistiam à TV, porém, a narrativa dos últimos dias foi completamente diferente: estouros e clarões de fogo de artilharia. Imagens desfocadas de restos humanos. Mulheres e crianças chorando e fugindo. Um apelo dos separatistas ao presidente. Uma reunião de emergência do Conselho de Segurança. Um discurso dramático à nação. E o que acontecerá agora é um mistério.

Há meses, enquanto Washington advertia sobre uma iminente invasão russa à Ucrânia, a poderosa máquina de propaganda do Kremlin desmentiu e zombou do discurso de guerra.

Então, no último fim de semana, tudo mudou. Do território ocupado da Ucrânia aos salões do Kremlin, a explicação para uma possível invasão foi montada, peça a peça, e apresentada ao público russo em um esforço contínuo na televisão estatal.

Na manhã de terça, o primeiro noticiário no Canal 1 anunciou um "momento histórico".

"Oito anos de medo terminaram", declarou o apresentador, referindo-se aos moradores do leste da Ucrânia, ocupado por separatistas, que, nas alegações infundadas do Kremlin, são alvo de um "genocídio" por forças ucranianas.

Ainda era cedo para saber como os russos reagiriam às medidas de Putin, mas não houve o júbilo generalizado que acompanhou a anexação da Crimeia em 2014. Enquanto a mídia estatal afirmava que a Ucrânia estava disparando contra regiões separatistas pró-Rússia, cuja independência Putin reconheceu, continuava impreciso até onde o Kremlin iria.

"Centenas e em breve dezenas de milhares de cidadãos ucranianos e russos poderão morrer por causa de Putin", publicou nas redes sociais Alexei Navalni, líder de oposição preso. "Certamente ele não deixará a Ucrânia se desenvolver e a arrastará para um pântano, mas a Rússia pagará o mesmo preço."

Legisladores na câmara baixa do Parlamento, a Duma, sugeriram que a campanha do Kremlin contra o governo pró-Ocidente do presidente ucraniano Volodimir Zelenski não terminaria com o reconhecimento dos territórios separatistas na região do Donbass.

O deputado nacionalista Andrei Lugovoi disse esperar que o reconhecimento marcasse "o início da devolução de toda a Ucrânia a seu seio histórico". Outro, Serguei Mironov, atacou Zelenski como um "covarde, mentiroso e bandido".

O tom era uma continuação da enxurrada de reportagens que pretendiam pintar a Ucrânia como agressor —embora Kiev insista que não tem planos de armar uma ofensiva contra os separatistas— e os EUA e seus aliados como belicosos.

No principal programa semanal de notícias do país, no domingo, o apresentador Dmitri Kiseliov citou os líderes que ele insistiu que poderiam se beneficiar com uma guerra: o britânico Boris Johnson, o francês Emmanuel Macron e o turco Recep Tayyip Erdogan. "Tudo é muito sério", avisou. "A Ucrânia está literalmente sendo arrastada para a guerra com a Rússia."

Mais tarde, no programa "Moscou. Kremlin. Putin", o porta-voz do presidente, Dmitri Peskov, reforçou a ideia de que, se a guerra estava chegando, não era opção da Rússia. "O país durante toda a sua história nunca atacou ninguém", disse.

Na segunda, a mídia transmitiu alegações de um ataque crescente de forças ucranianas e uma série de afirmações infundadas —que a Ucrânia estava bombardeando antenas de comunicações, pontes, uma estação de água. A TV russa relatou de Donetsk que Kiev tinha enviado sabotadores.

No canal de YouTube do apresentador Vladimir Soloviov, um repórter no território separatista descreveu a morte de um morador por tiros de canhão ucranianos. "Há um genocídio em curso."

Autoridades ucranianas insistiram que eram os separatistas que atacavam seu próprio território. Outras advertiram que a Rússia estava travando uma furiosa guerra de desinformação.

Gravações de mulheres e crianças fugindo dos territórios separatistas foram impressionantes. Na TV estatal, um repórter descreveu que psicólogos do governo se mobilizaram para apoiar refugiados. "Eu gostaria de dizer oi para meu pai", disse um menino no vídeo.

O espetáculo parecia destinado a legitimar a decisão fatídica de Putin, projetando sua tomada de decisão como deliberada e determinada —refutando críticos que viam o presidente mais isolado que nunca.

Na tarde de segunda-feira, Putin reuniu autoridades no Kremlin, presidindo a reunião televisiva não agendada de seu Conselho de Segurança. Por causa da Covid, se sentou à sua mesa branca com bordas douradas, enquanto os demais ocuparam cadeiras dispostas à frente dele.

"Gostaria de ressaltar que não discuti nada antecipadamente com nenhum de vocês", disse, no meio da reunião, aumentando o suspense como num reality show. "O que está acontecendo agora está acontecendo em uma página em branco."

Alguns pareciam nervosos, outros fizeram pedidos mal disfarçados de uma ofensiva militar em grande escala. Putin interrompeu diversas vezes seu chefe de inteligência internacional, Serguei Narishkin, que parecia se equivocar sobre reconhecer ou não a independência dos rebeldes, levando-o a gaguejar e dizer que era a favor da anexação dos territórios. "Não é disso que estamos falando", o presidente atirou.

Até recentemente, parecia que muitos russos tinham se desligado da ideia de um conflito iminente.

No domingo (20), um punhado de ativistas iniciou protestos contra a guerra na praça Pushkin, no centro de Moscou —todos foram detidos. Um deles, Lev Ponomarev, ativista dos direitos humanos, insiste que por ora muitos não podem imaginar uma guerra, mas a maioria seria contra se ela de fato acontecesse. "Será o colapso desse regime", disse, na segunda.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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