Rede de ativistas 'Vidas Imigrantes Negras Importam' denuncia injustiças contra africanos

Grupo se mobiliza para ajudar em casos que unem racismo e xenofobia no Brasil, como o de Moïse

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São Paulo

Nos protestos de rua após o assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, em meio às faixas com a tradução para o português das palavras Black Lives Matter (vidas negras importam), um cartaz trazia uma versão do slogan americano antirracista com uma palavra extra. A frase "vidas imigrantes negras importam" era exibida por um integrante de uma rede de ativistas de mesmo nome, que surgiu dois anos antes do espancamento brutal que matou Moïse no mês passado no Rio de Janeiro.

O grupo, que reúne pessoas e organizações que lutam contra a xenofobia e o racismo no Brasil, foi criado após o assassinato violento de outro imigrante em maio de 2020, o frentista angolano João Manuel. Morador da região leste de São Paulo, ele foi esfaqueado perto de casa por um mecânico brasileiro, após uma discussão sobre o recebimento do auxílio emergencial por imigrantes –que tinham direito ao benefício do governo, quando vigente. Dois amigos dele ficaram feridos ao tentar impedir o crime.

Movimentos de luta por direitos humanos e contra o racismo em ato pedindo justiça por Moïse Kabagambe, na avenida Paulista, em SP - Mathilde Missioneiro - 5.fev.22/Folhapress

A congolesa Hortense Mbuyi, uma das primeiras a integrar a rede, conta que já vinha percebendo há algum tempo uma escalada na discriminação contra imigrantes africanos e haitianos que moram na periferia. "Era tanta violência, tanta agressividade, que quando o João Manuel foi assassinado, a gente falou: ‘Chega’. Não podemos ficar olhando os casos se multiplicando sem falar nada, sem ninguém gritar."

Advogada, Hortense é a atual presidente do Conselho Municipal de Imigrantes da cidade de São Paulo. Ela própria morou na região de Itaquera por mais de cinco anos e saiu de lá temendo por sua segurança.

"Quando eu cheguei, em 2014, eu era bem-vinda, me acolheram. Mas desde as últimas eleições presidenciais, e com a chegada de mais africanos e haitianos ao bairro, percebi uma mudança. Foi nascendo um ódio em relação aos imigrantes, a gente começou a ser discriminado no mercado, no ônibus", conta. "Tinham que se juntar três ou quatro pessoas para pegar um táxi até o centro, porque motoristas de ônibus não queriam nos levar. Começamos a ouvir as pessoas gritando na rua ‘Volta para a sua terra’."

A advogada congolesa Hortense Mbuyi, que foi uma das primeiras a participar da rede Vidas Imigrantes Negras Importam, no ato que pedia justiça para Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro
A advogada congolesa Hortense Mbuyi, que foi uma das primeiras a participar da rede Vidas Imigrantes Negras Importam, no ato que pedia justiça para Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro - Mariana Maiara/Divulgação

Imigrantes não brancos, como haitianos, africanos, bolivianos e venezuelanos, são os que sofrem esse tipo de preconceito, afirma ela. "O imigrante branco se mistura com os brasileiros e é mais respeitado. Já o africano ou haitiano é percebido de longe. E o que acho chocante é que a gente sofre racismo não só dos brancos, mas dos próprios negros brasileiros", diz.

Além dos ataques com desfecho fatal, Hortense afirma que alguns imigrantes negros sofreram agressões que os levaram a precisar de acompanhamento médico e psicológico. Ela ressalta ainda que a discriminação dificulta o acesso a boas vagas de emprego mesmo para aqueles que têm boa formação.

"Até as organizações sociais só pensam na gente quando tem vaga de faxineiro. A vida do imigrante negro importa não só porque estão assassinando a gente. Importa porque a gente tem pouca oportunidade de estudar, de conseguir um trabalho decente."

O Vidas Imigrantes Negras Importam não é uma organização constituída, não tem financiamento próprio nem instituição por trás. "É uma rede de solidariedade, mais do que um movimento. Uma articulação que surge para responder a casos muito críticos", define Karina Quintanilha, advogada e pesquisadora integrante do Fórum Fronteiras Cruzadas.

"Unindo forças, conseguimos chegar ao familiar da pessoa, mobilizar advogados, movimentos sociais, imprensa, parlamentares."

Após a morte de João Manuel, além de manifestações para dar visibilidade ao caso, o grupo organizou uma arrecadação de fundos para ajudar a família e conseguiu um advogado trabalhista para buscar direitos para a esposa e as filhas do angolano.

Em 2021, eles auxiliaram Falilatou Sarouna, togolesa presa em uma operação policial após ter o nome usado em contas bancárias por uma organização criminosa. Segundo seus advogados, a imigrante, que é analfabeta, foi enganada e vítima, ela própria, de um golpe. Falilatou acabou obtendo na Justiça o direito de responder em liberdade ao processo.

A rede também faz campanha pela permanência da cantora e dançarina sul-africana Nduduzo Siba, que corre o risco de ser deportada após cumprir pena em uma penitenciária de São Paulo. A Defensoria Pública da União, que cuida do caso, pede à Justiça que ela não seja expulsa, já que demonstra ter se inserido na sociedade brasileira —ela já se apresentou em palcos como o Auditório Ibirapuera e o Teatro Oficina.


A violência mais recente denunciada pelo grupo é o assassinato do venezuelano Marcelo Larez em Mauá (SP), segundo a família por uma dívida de R$ 100 de aluguel. Um coletivo antirracista local está prestando assistência à mulher e aos filhos da vítima.

Ativistas de longa data do movimento negro do Brasil têm se aproximado da causa imigrante e também fazem parte da rede Vidas Imigrantes Negras Importam. É o caso de Regina Lúcia dos Santos, coordenadora estadual do MNU (Movimento Negro Unificado) em São Paulo.

"O assassinato do João Manuel é emblemático. A brutalização da vida nas periferias é tão grande que se torna natural tirar a vida de uma pessoa que você acha que está usurpando um direito seu. E o imigrante só entra na conta dessa política de mortes porque é negro ou de origem indígena", afirma.

Regina defende que os africanos recebam automaticamente a cidadania brasileira, como reparação histórica pelos séculos de escravidão. "Os africanos que aqui chegam não deveriam ser tratados como imigrantes, mas como cidadãos plenos. Este país deve à África o seu processo de construção."

Para ela, o que existe no Brasil não é xenofobia, mas "xenorracismo". "Os imigrantes brancos são recebidos de braços abertos. Sempre foi assim."

Ela lembra que, enquanto o assassinato de Moïse teve grande repercussão, outras mortes violentas de imigrantes quase não tiveram visibilidade. "Nosso movimento é anterior e vai continuar. Porque esse não é o primeiro caso e não será o último, infelizmente. "

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