Descrição de chapéu China Coronavírus Ásia

China adapta 'Covid zero' com lockdown menor e quarentena mais curta

Em meio a nova onda de casos, regime defende discurso de tolerância zero sob pressão de especialistas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Ir a um bar e, porque um dos clientes teve contato com alguém com Covid-19, ver as portas se fecharem e poder sair só depois de 48 horas e com testes negativos para a doença. Ficar presa no trabalho na véspera da licença-maternidade porque alguém contaminado passou por ali. Ou numa feira de negócios, numa fábrica em que você nem trabalha, no prédio de um amigo.

Todos esses são relatos ouvidos pela Folha de episódios que aconteceram em Shenzhen e Xangai, duas das cidades mais importantes da China, que hoje enfrenta o pior surto de Covid-19 desde a primeira onda da doença, entre o final de 2019 e o começo de 2020.

Morador de região isolada em Xangai recebe entrega em meio ao lockdown parcial na cidade chinesa
Morador de região isolada em Xangai recebe entrega em meio ao lockdown parcial na cidade chinesa - Aly Song/Reuters

De lá para cá, o país controlou com relativo sucesso a disseminação do vírus e ostenta números baixíssimos, com uma política dura conhecida por Covid zero, em que nenhum nível de contaminação é considerado aceitável.

Agora, porém, com novos surtos atingindo cidades vitais para a economia enquanto a maior parte do mundo volta ao velho normal, parte da população questiona o custo de manter a rigidez. E o regime dá sinais de afrouxamento, ainda que não admita no discurso oficial.

Um exemplo claro é Hong Kong, onde a chegada da variante ômicron atingiu em cheio uma população idosa pouco vacinada e elevou o número de mortes a uma média de 285 por dia no pior momento deste mês, em 14 de março.

O número de novos casos, após atingir um pico de mais de 65 mil por dia em média no começo do mês, começou a cair de forma acelerada a menos de 15 mil na última quinta (24). Neste sábado (26), foram 8.841 diagnósticos (contra 10,4 mil nas 24 horas anteriores) e 139 mortes. Cientistas pedem uma revisão da estratégia de Covid zero.

Na terça (22), Gabriel Leung, que comanda uma equipe de pesquisadores que aconselham o governo local, convocou jornalistas para pedir que a tática agora foque esforços não em lockdowns, mas na vacinação —antes que uma nova onda de casos "feche Hong Kong para sempre".

Os cientistas calculam que cerca de 60% da população de 7,5 milhões de habitantes da cidade tenha se contaminado nessa leva mais recente. Nesta semana, a cidade autorizou voos vindos de EUA, Reino Unido e Canadá, até então proibidos, e reduziu a quarentena obrigatória de 14 para 7 dias.

Os números de Hong Kong, considerada uma região administrativa especial, não entram na contagem total de casos da China, que têm cifras muito menores —o pior surto em dois anos da chamada China continental, com pouco mais de 4.000 casos diários, seria um número comemorado em outras partes do mundo.

O país tem decretado lockdowns em locais que acumulam algumas dezenas de casos, como Shenzhen, cidade de 17 milhões de habitantes que faz fronteira com Hong Kong.

Mas a velocidade da reabertura —na segunda (21), após oito dias de quarentena— deu sinais de regras menos rígidas. Shenzhen é considerada uma espécie de Vale do Silício chinês, onde funcionam as sedes de multinacionais como Huawei e Tencent, além de uma fábrica da Foxconn, que produz iPhones.

Havia um receio de que o isolamento durasse o mesmo que em Xi'an, cidade na região central do país, com 13 milhões de habitantes, que ficou um mês em lockdown completo, entre dezembro e janeiro.

Logo após a decretação das restrições em Shenzhen, o líder chinês, Xi Jinping, afirmou publicamente que a economia do país deveria ser protegida, e então a cidade passou a isolar apenas bairros, edifícios ou estabelecimentos com registros de casos.

A reabertura foi recebida com alívio por Renata Doria Miguel, 37, que trabalha como desenvolvedora de produtos. "As coisas mudam muito de última hora, e com criança em casa foi bem difícil não poder sair", diz ela, que vive há oito anos na China.

Antes Renata já havia ficado trancada por uma semana, podendo circular só pelo condomínio, após um morador registrar contato com uma pessoa contaminada —o país tem um sistema de QR Codes e rastreamento pelo qual é possível saber por onde cada pessoa circulou e com quem interagiu.

"É uma loteria. Você está em um lugar, passa alguém com Covid do seu lado e você precisa se isolar. Uma amiga está desde fevereiro em lockdown porque um caso foi confirmado em um prédio vizinho e então outros foram se sobrepondo."

Não faltam histórias assim, segundo Renata. Desde a vizinha que, grávida, no último dia de trabalho antes da licença-maternidade, ficou presa na empresa até testarem todo mundo depois de uma suspeita até o pai de uma amiga, idoso, que precisou permanecer em uma fábrica durante uma visita corriqueira ao local.

"O chinês médio diz entender que o governo faz o que é melhor para a população, mas no meu trabalho já começam a questionar quanto o lockdown está custando."

Ao longo dos últimos dois anos, quem vive na China conseguiu levar uma vida relativamente normal, com a pandemia sob controle muito antes de nações ocidentais. Com uma diferença: entrar e sair do país é dificílimo, com uma quarentena rígida de pelo menos 14 dias, a depender da região de destino.

"Como estamos acostumados a viver em um país com tantas regras, respeitamos. Mas agora estamos indo para o terceiro ano com o país fechado. Fica uma angústia, está todo mundo meio pirando", diz Gláucia Duque, artista e educadora infantil, na China há 13 anos.

Oficialmente, o regime não fala em ajustar a política até que as condições do país e de vizinhos estejam melhores. "Quando avançarmos com vacinação e tecnologia, como o desenvolvimento de novos remédios e vacinas, acho que chegaremos a um momento em que a ômicron pode se tornar uma variante mais leve e menos transmissível, e aí teremos a melhor oportunidade [para abandonar a Covid-zero]", disse ao canal estatal CCTV Liang Wannian, chefe do comitê de especialistas de Covid.

Ele defende uma "política dinâmica de Covid zero", como chama os esforços adotados a partir de agosto de 2021, de fechar bairros ou regiões antes de impor lockdown sobre uma cidade inteira.

"O mais importante é minimizar o impacto da epidemia na economia, na sociedade, na produção e na vida das pessoas e equilibrar a prevenção e o controle da doença com a estabilidade socioeconômica", escreveu ele, em artigo de janeiro, junto a outros pesquisadores, no semanário do CDC (centro de controle de doenças) chinês.

É algo similar ao que ocorre hoje em Shenzhen e Xangai, cidade mais populosa do país e outro importante centro financeiro, que tem se fechado aos poucos para evitar um lockdown completo.


Neste sábado, aliás, mesmo com o número de novos diagnósticos indicando nova alta, para 2.269 (de um total de 5.600 no país), o discurso se manteve. "Se nossa cidade parar completamente, haverá um monte de navios internacionais de carga boiando no porto. Isso impactaria a economia nacional inteira, além do mercado global", disse Wu Fan, membro da força-tarefa local.

O combate à Covid em Xangai é liderado por Zhang Wenhong, respeitado cientista do país. No ano passado, ele foi ao Weibo, popular rede social chinesa, dizer que eventualmente a China deveria aprender a conviver com o vírus. Acabou fortemente atacado por internautas nacionalistas, que o acusaram de se deixar levar por ideias do Ocidente e de querer que as pessoas morressem.

O médico foi alvo de retaliações, e a Universidade Fudan reabriu uma investigação de plágio de sua tese de doutorado.

Símbolo da mudança dos ventos é que comentários semelhantes foram feitos neste mês por Zeng Guang, ex-cientista-chefe do CDC chinês, na mesma rede social.

Ele escreveu um artigo defendendo que a política de Covid zero não pode "permanecer inalterada para sempre" e que "é o objetivo de longo prazo da humanidade coexistir com o vírus". Afirmou ainda que uma estratégia mais eficaz envolveria a China desenvolver melhores vacinas de RNA mensageiro (como a da Pfizer) ou autorizar a aplicação de imunizantes estrangeiros. Pouco depois, a publicação foi excluída da rede —e Zeng não passou por nada parecido com os ataques ao colega.

Enquanto isso, Xangai vai se fechando aos poucos, o que tem desagradado muitos estrangeiros que vivem na cidade cosmopolita.

"Tem muita gente indo embora por causa disso, até porque não dá para ir ao Brasil e voltar facilmente. As pessoas têm parentes, amigos, e não podem visitá-los. Um conhecido chinês, dono de um restaurante brasileiro, foi abrir um negócio na Turquia que não deu certo e gastou 40 dias para conseguir voltar", diz o músico Paulo Cesar da Silva, 62, o PC Shanghai, que vive no país há 23 anos.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.