China se vê emergir como vitoriosa da guerra na Ucrânia

Alinhamento da Europa e de outros países aos EUA devido à postura de Pequim no conflito é, no entanto, risco a Xi Jinping

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Steven Lee Myers Chris Buckley
The New York Times

A guerra na Ucrânia está longe de ter terminado, mas nos círculos políticos chineses há um consenso tomando forma de que um país deve sair vitorioso de toda a destruição: a China.

Após uma reação inicial confusa à invasão russa, a China deitou as bases de uma estratégia para proteger-se das piores consequências econômicas e diplomáticas que pode enfrentar e para beneficiar-se de mudanças geopolíticas possíveis depois que a fumaça se desvanecer.

O líder chinês, Xi Jinping, tem evitado tecer críticas ao presidente russo, Vladimir Putin, mas também vem procurando distanciar a China do massacre. Seu governo criticou as sanções internacionais impostas à Rússia, mas, pelo menos até agora, deu a entender que as empresas chinesas podem respeitá-las, para proteger os interesses econômicos chineses no Ocidente.

Sob ceu azul, telão transmite discurso do líder chinês, Xi JInping, em Pequim
Transmissão de discurso do líder chinês, Xi JInping, em Pequim - Tingshu Wang - 5.mar.22/Reuters

Na semana passada, Xi procurou líderes europeus com ofertas hesitantes de assistência na negociação de um acordo, mas ao mesmo tempo outras lideranças chinesas amplificaram campanhas de desinformação russas para desacreditar os EUA e a Otan.

Funcionários em Washington disseram que após a invasão a Rússia pediu ajuda econômica e militar à China, alegação que na segunda-feira um representante chinês tachou de desinformação. A liderança chinesa acabou decidindo que precisa tentar se distanciar do que enxerga como uma disputa entre duas potências desgastadas e ser vista como um pilar de estabilidade num mundo cada vez mais turbulento.

"Isso significa que, desde que não cometamos erros estratégicos terminais, a modernização da China não será interrompida, e, pelo contrário, a China terá ainda mais capacidade e disposição de exercer um papel mais importante na construção de uma nova ordem internacional", escreveu em artigo amplamente circulado Zheng Yongniang, professor da Universidade Chinesa de Hong Kong em Shenzhen e que tem atuado como conselheiro de líderes chineses.

Está na base da estratégia chinesa a convicção de que os EUA se enfraquecem com aventuras imprudentes em outros países, incluindo, na visão de Pequim, ter incitado Putin para o conflito na Ucrânia.

Segundo essa visão, que nos últimos dias vem sendo ecoada em declarações públicas e análises quase oficiais, a invasão russa arrastou o poderio e a atenção dos EUA na direção da Europa, tornando provável que o presidente Joe Biden, como seus predecessores recentes, tente, mas não consiga voltar mais atenção à China e à região maior da Ásia-Pacífico.

"Todas as dificuldades, todos os malabarismos e todos os constrangimentos dos quais estamos falando são coisas de curto prazo", disse Yun Sun, diretor do Programa China do think tank Simpson Center, em Washington, que vem estudando as ações de Pequim na fase de preparação para a guerra. "No longo prazo, a Rússia vai virar o pária da comunidade internacional e não terá a quem recorrer senão a China."

O caminho que a China deve seguir daqui em diante está longe de certo. Uma aproximação excessiva com a Rússia correria o risco de arraigar a hostilidade da Europa e outras regiões à China. Essa é uma possibilidade que preocupa o governo de Xi, não obstante seu discurso otimista.

Na segunda-feira, o assessor principal de segurança nacional de Biden, reunindo-se com seu colega chinês em Roma, avisou que os EUA têm "receios profundos" em relação ao alinhamento crescente de Pequim com a Rússia. Se Alemanha, França e outros aliados reforçarem suas defesas conforme prometeram, os EUA podem acabar tendo folga suficiente para transferir uma parte maior de seus recursos militares para o combate à China. Biden prometeu mobilizar uma "aliança de democracias" e líderes militares americanos dizem que não deixarão que a Ucrânia os faça desviar sua atenção da China.

"Também sentimos ansiedade, porque a guerra entre Rússia e Ucrânia forçará a Europa a se aproximar mais dos EUA, e então a China será arrastada mais fundo num dilema", disse Zhu Feng, professor de relações internacionais na Universidade de Nanjing. Os aliados dos EUA no Pacífico, incluindo Japão e Austrália, "também adotarão uma postura militar mais forte". "Tudo isso parece à China ser inamistoso."

Os tropeços iniciais da China após a invasão russa também provocaram receios quanto à capacidade de Xi de guiar o país no meio dos tremores secundários da guerra. Xi tem alertado lideranças chinesas de que o mundo está ingressando numa era de turbulência "como não é vista há um século". Mas essas lideranças pareceram pouco preparadas para o ataque de Putin à Ucrânia.

Até o dia da invasão, elas fizeram pouco caso dos avisos de que a Rússia estava prestes a iniciar uma guerra, em vez disso acusando os EUA de elevar as tensões. Desde então, elas têm tido dificuldade em conciliar solidariedade com as queixas de segurança de Putin com seu próprio respeito declarado pelo princípio da soberania nacional, incluindo a da Ucrânia.

Em videoconferência com o presidente francês, Emmanuel Macron, e o premiê alemão, Olaf Scholz, Xi lamentou que "as chamas da guerra tenham sido reacesas" na Europa. Mas seus diplomatas vêm atiçando as chamas da desinformação russa, acusando os EUA de desenvolver armas biológicas na Ucrânia.

"Isto não é bom para a reputação internacional da China", comentou Bobo Lo, especialista em relações sino-russas no Instituto Francês de Relações Internacionais. "Não é apenas a reputação da China no Ocidente; acho que isso também afeta a reputação da China no não Ocidente, porque, essencialmente, Pequim está se associando a uma potência imperialista."

A China pode também enfrentar consequências econômicas adversas da guerra e dos esforços ocidentais de punir a Rússia, restringindo o comércio e cortando o acesso a suas instituições financeiras.

Autoridades chinesas denunciaram tais medidas, e embora os EUA e seus aliados venham demonstrando unidade notável na imposição delas, outros países compartilham a reticência de Pequim em relação a utilizar ferramentas econômicas poderosas como armas.

Seja como for, a economia chinesa é suficientemente grande para poder absorver golpes que paralisariam outros países. É até possível que empresas chinesas acabem se beneficiando da necessidade urgente da Rússia de comércio, como aconteceu quando Moscou sofreu sanções pela anexação da Crimeia, em 2014.

Argumentando que a era de hegemonia americana após a queda da União Soviética em 1991 foi uma anomalia histórica, tanto Xi quanto Putin abraçaram doutrinas geopolíticas que preveem que seus países recuperem seu status de grandes potências. Do mesmo modo que Putin alega que os EUA ameaçam a Rússia em sua fronteira ocidental, Xi enxerga o apoio dos EUA a Taiwan, ilha democrática autônoma que Pequim reivindica como parte da China, como uma ameaça semelhante ao largo de seu território.

À medida que busca apoio em Pequim para resistir às sanções ocidentais, a Rússia ficará cada vez mais dependente da China para sua sobrevivência diplomática e econômica, dizem analistas, ao mesmo tempo em que servirá de lastro geopolítico estratégico da China. "A velha ordem está se desintegrando rapidamente, e a política de líderes autoritários volta a crescer entre as grandes potências mundiais", escreveu Zheng, da Universidade Chinesa de Hong Kong em Shenzhen.

"Os países estão cheios de ambição, como tigres encarando suas presas, procurando todas as oportunidades possíveis em meio às ruínas da velha ordem."

Tradução de Clara Allain

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