Como a Otan e os EUA ajudaram a armar a Ucrânia numa corrida contra o tempo

Em meio a mais pedidos de Zelenski por ajuda, Ocidente fez operação para fornecer 17 mil armas antitanque em 6 dias

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

The New York Times

Em uma pista coberta de neve na Base Aérea de Amari, no norte da Estônia, na manhã de domingo (6), paletes com rifles, munições e outras armas estavam sendo colocados num dos maiores aviões de carga do mundo, um Antonov AN-124, pertencente à Força Aérea ucraniana. É uma aeronave da Guerra Fria, construída e comprada quando o país ainda fazia parte da União Soviética.

Agora está sendo usada contra a invasão russa, como parte de uma vasta ponte aérea que autoridades americanas e europeias descrevem como uma corrida desesperada para colocar toneladas de armas nas mãos das forças ucranianas enquanto rotas de abastecimento ainda estão abertas.

Cenas como essa —que lembram a ponte aérea de Berlim, a famosa corrida dos aliados para manter Berlim Ocidental abastecida com itens essenciais em 1948 e 1949, enquanto a União Soviética tentava estrangulá-la— estão acontecendo por toda a Europa.

Equiamento militar sendo carregado no avião Antonov 124
Equipamento militar sendo carregado no avião Antonov 124 - Daniel Mihailescu - 3.mar.22/AFP

Em menos de uma semana, os Estados Unidos e a Otan enviaram mais de 17 mil armas antitanque, incluindo mísseis Javelin, pelas fronteiras da Polônia e da Romênia, descarregando-as de gigantescos aviões militares para que possam viajar por terra até Kiev, a capital ucraniana, e outras grandes cidades.

Até agora, as forças russas estão tão ocupadas em outras partes do país que não têm como alvo as linhas de fornecimento de armas, mas poucos acham que isso possa durar. Essas são apenas as contribuições mais visíveis. Escondidas em bases no leste da Europa, as forças do Comando Cibernético dos EUA, conhecidas como "equipes de cibermissão", estão a postos para interferir nos ataques e comunicações digitais da Rússia. Mas medir sua taxa de sucesso é difícil, dizem as autoridades.

Em Washington e na Alemanha, oficiais de inteligência correm para mesclar fotografias de satélite com interceptações eletrônicas de unidades militares russas, remover as pistas de como elas foram obtidas e transmiti-las para unidades militares ucranianas em uma ou duas horas.

Enquanto tenta ficar a salvo das forças russas em Kiev, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, viaja com equipamentos de comunicação criptografados, fornecidos pelos EUA, que podem colocá-lo em uma ligação segura com o presidente Joe Biden. Zelenski o usou no sábado à noite para uma ligação de 35 minutos com seu homólogo americano sobre o que mais os EUA podem fazer para manter a Ucrânia viva sem entrar em combate direto no solo, no ar ou no ciberespaço com as forças russas.

Zelenski elogiou a ajuda até agora, mas repetiu as críticas que fez em público —que a ajuda é extremamente insuficiente para a tarefa. Ele pediu uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia, o fechamento de todas as exportações de energia russas e um novo suprimento de jatos de combate.

É um equilíbrio delicado. No sábado, enquanto Biden estava em Wilmington, sua equipe do Conselho de Segurança Nacional passou a maior parte do dia tentando encontrar uma maneira de a Polônia transferir uma frota de caças MiG-29 de fabricação soviética bem usados, que os pilotos ucranianos sabem voar.

Mas o acordo depende de dar à Polônia, em troca, caças F-16 de fabricação americana muito mais capazes, operação que se torna mais complicada pelo fato de muitos desses caças estarem prometidos a Taiwan —onde os EUA têm maiores interesses estratégicos. Os líderes poloneses disseram que não há acordo e estão claramente preocupados com a forma como forneceriam os jatos à Ucrânia e se isso os tornaria um novo alvo dos russos. Os EUA dizem que estão abertos à ideia da troca de aviões.

"Não posso falar num cronograma, mas posso apenas dizer que estamos analisando isso muito, muito ativamente", disse o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, no domingo (6), durante viagem que o levou à Moldova, outro país não membro da Otan que as autoridades americanas temem possa ser o próximo na lista de nações para Vladimir Putin trazer de volta à esfera de influência de Moscou.

E no centro de Washington grupos de lobby e escritórios de advocacia que antes cobravam generosamente do governo ucraniano por seus serviços, agora estão trabalhando de graça, ajudando o governo de Zelenski a pedir mais sanções à Rússia.

Os ucranianos também estão pedindo mais dinheiro para armas, embora rejeitem a ideia de que Washington esteja manipulando a imagem de Zelenski para apresentá-lo como um Winston Churchill de camiseta, unindo seu país para a guerra. Covington & Burling, um importante escritório de advocacia, apresentou uma moção pro bono em nome da Ucrânia no Tribunal Internacional de Justiça.

Em muitos aspectos, é um esforço mais complexo do que a ponte aérea de Berlim há três quartos de século. Berlim Ocidental era um pequeno território com acesso aéreo direto. A Ucrânia é um país extenso de 44 milhões de habitantes, do qual Biden retirou todas as forças americanas na tentativa de evitar se tornar um "cocombatente" na guerra, termo jurídico que indica até que ponto os EUA podem ajudar a Ucrânia sem serem considerados em conflito direto com a Rússia e suas armas nucleares.

Um fluxo de armas se torna uma torrente

Para entender a natureza veloz das transferências de armas em andamento hoje, considere o seguinte: um pacote de armas de US$ 60 milhões (cerca de R$ 306 milhões) para a Ucrânia que os EUA anunciaram em agosto não foi concluído até novembro, disse o Pentágono.

Mas quando Biden aprovou US$ 350 milhões (mais de R$ 1,7 bilhão) em ajuda militar em 26 de fevereiro —valor quase seis vezes maior—, 70% disso foi entregue em cinco dias.

A velocidade foi considerada essencial, disseram as autoridades, porque o equipamento, incluindo armas antitanque, teve que passar pelo oeste da Ucrânia antes que as forças aéreas e terrestres russas começassem a atacar os carregamentos. À medida que a Rússia ocupa mais território no país, espera-se que fique cada vez mais difícil distribuir armas às tropas ucranianas.

Os primeiros desses carregamentos, em grande parte alemães, estavam chegando a aeródromos perto da fronteira com a Ucrânia 48 horas após Biden aprovar a transferência de armas dos estoques militares dos EUA, disseram autoridades. Os militares foram capazes de enviar essas remessas rapidamente, aproveitando os estoques militares pré-posicionados prontos para embarque em aviões de transporte C-17 da Força Aérea e outras aeronaves de carga, e transportando-os para cerca de meia dúzia de bases de preparação em países vizinhos, principalmente Polônia e Romênia.

Ainda assim, o esforço de reabastecimento enfrenta grandes desafios logísticos e operacionais.

"A janela para fazer coisas fáceis para ajudar os ucranianos se fechou", disse o major-general Michael Repass, ex-comandante das forças de Operações Especiais dos EUA na Europa.

Segundo autoridades americanas, os líderes ucranianos lhes disseram que o armamento americano e de outros aliados está fazendo diferença no campo de batalha. Soldados ucranianos armados com mísseis antitanque Javelin disparados do ombro atacaram várias vezes na semana passada um comboio de quilômetros de blindados e caminhões de suprimentos russos, ajudando a impedir o avanço terrestre russo ao se aproximar de Kiev, disseram autoridades do Pentágono.

Alguns veículos estão sendo abandonados, disseram autoridades, porque as tropas russas temem ficar sentadas no comboio quando os tanques de abastecimento de combustível estão sendo atacados pelos ucranianos, desencadeando bolas de fogo.

Guerra no ciberespaço mal começou

Uma das características estranhas do conflito até agora é que ele inclui variedades de guerras antigas e modernas. As trincheiras cavadas pelos soldados ucranianos no sul e no leste parecem cenas de 1914.

Os tanques russos rolando pelas cidades evocam Budapeste em 1956. Mas a batalha da atualidade, que para a maioria dos estrategistas marcaria os primeiros dias da guerra —sobre redes de computadores e elétricas e sistemas de comunicação que eles controlam—, mal começou.

Autoridades americanas dizem que isso se deve em parte ao extenso trabalho feito para fortalecer as redes da Ucrânia após os ataques russos à sua rede elétrica em 2015 e 2016. Mas para especialistas isso não pode explicar tudo. Talvez os russos não tenham se esforçado muito no início ou estejam mantendo seus ativos em reserva. Talvez uma contraofensiva liderada pelos americanos —parte do que o general Paul Nakasone, chefe do Comando Cibernético e da Agência de Segurança Nacional, chama de doutrina de "engajamento persistente" em redes globais— explique pelo menos parte da ausência.

Autoridades do governo estão compreensivelmente de boca fechada, dizendo que as operações cibernéticas em andamento, que foram transferidas nos últimos dias de um centro de operações em Kiev para um fora do país, são alguns dos elementos mais secretos do conflito. Mas está claro que as equipes de cibermissão rastrearam alguns alvos conhecidos, incluindo as atividades do GRU, as operações de inteligência militar da Rússia, para tentar neutralizar sua atividade. A Microsoft ajudou, lançando patches em horas para eliminar o malware detectado em sistemas não sigilosos.

Tudo isso é um território novo quando se trata da questão de saber se os EUA são um "cocombatente". Pela interpretação americana das leis do ciberconflito, eles podem interromper temporariamente a capacidade russa sem conduzir um ato de guerra; a incapacidade permanente é mais problemática.

Mas, como os especialistas reconhecem, quando um sistema russo cai, as unidades russas não sabem se é temporário ou permanente, ou mesmo se os EUA são responsáveis.

De modo semelhante, compartilhar inteligência é perigoso. As autoridades americanas estão convencidas de que as agências militares e de inteligência da Ucrânia estão cheias de espiões russos, por isso tomam cuidado para não distribuir informações cruas que revelariam fontes.

E elas dizem que não estão transmitindo informações específicas que digam às forças ucranianas como ir atrás de alvos específicos. A preocupação é que isso dê à Rússia uma desculpa para dizer que está lutando contra os EUA ou a Otan, não a Ucrânia.

David E. Sanger , Eric Schmitt , Helene Cooper , Julian E. Barnes e Kenneth P. Vogel

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.