Cruzada antivacina de um Kennedy causa angústia a tradicional família política dos EUA

Baseado em desinformação, Bobby Kennedy Jr. tornou-se um dos mais proeminentes ativistas contra os imunizantes

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Adam Nagourney
The New York Times

Kerry Kennedy lembra o quanto ela admirava seu irmão mais velho, Robert, quando eles eram crianças em Hickory Hill, a propriedade da família em McLean, na Virgínia. Ela conta que ele a levava a riachos, que rastejavam dentro de canos e pegavam sapos e cobras, ignorando os amigos dele que não queriam uma menina de seis anos em suas aventuras na natureza.

"Ele foi um irmão mais velho extraordinário", disse Kerry. "Ele é brilhante, é instruído, cuida dos outros com profundidade, é extremamente carismático. Ele tem uma animação e uma leveza juvenis. É uma pessoa bonita de um milhão de maneiras diferentes. Mas tem esse lado..."

Quase 60 anos depois que Bobby levou sua irmã a passear pela floresta, o filho homônimo de Robert F. Kennedy –o senador por Nova York, ministro da Justiça e candidato presidencial democrata que foi assassinado em 5 de junho de 1968– tornou-se uma figura incrivelmente polarizadora nessa família política tão unida.

Robert F. Kennedy Jr. durante manifestação contra vacinas e medidas de contenção do coronavírus em Washington, nos EUA - Tom Brenner- 23.jan.22/Reuters

Outrora um dos principais ambientalistas que liderou a luta para despoluir o Rio Hudson em Nova York, o terceiro filho mais velho de Robert e Ethel Kennedy surgiu como uma das principais vozes na campanha que lança dúvidas sobre as vacinas contra o coronavírus e outras medidas promovidas pela Casa Branca de Joe Biden no combate à pandemia que, perto do final de fevereiro, matava cerca de 1.900 pessoas por dia.

"No minuto em que eles lhe entregam o passaporte vacinal, todos os direitos que você tem são transformados em um privilégio dependente de sua obediência às ordens arbitrárias do governo", disse ele a uma multidão numa manifestação contra a obrigatoriedade da vacinação em Washington no mês passado. "Isso fará de você um escravo."

A ascensão de Kennedy como a face do movimento de resistência à vacina foi um teste inédito para a solidariedade de uma família que durante décadas permaneceu firme diante da tragédia e do escândalo.

Isso abalou os círculos de Hollywood e de entretenimento em que ele vive, ao mesmo tempo em que mostra como o debate sobre vacinas está derrubando as alianças políticas tradicionais.

E deixou os Kennedy e seus amigos angustiados e perplexos com a drástica virada na vida muitas vezes conturbada de um homem que carregou o caixão no funeral de seu pai quando tinha 14 anos, saiu da dependência de drogas para se tornar um dos principais ambientalistas do país e que é considerado um dos Kennedy politicamente mais talentosos de sua geração.

Bobby Kennedy usou efetivamente seu talento e um dos nomes mais proeminentes da história política americana como plataforma para alimentar a resistência às vacinas que podem salvar inúmeras vidas.

Sua conduta "enfraquece 50 anos de prática de saúde pública em vacinação, e ele fez isso de uma maneira que nunca vi ninguém fazer", disse Michael T. Osterholm, diretor do Centro de Pesquisa e Política de Doenças Infecciosas da Universidade de Minnesota. "Ele está entre os mais perigosos, por causa de sua credibilidade e do que seu sobrenome trouxe para essa questão."

Blake Fleetwood, escritor que chama Kennedy de "inspiração" e é seu amigo e companheiro de esqui desde 1971, disse que não consegue entender por que Kennedy está "arriscando toda a sua vida" de ativismo ao "assumir essa cruzada".

"Por que ele está estragando o trabalho de toda a sua vida?", questionou.

Kennedy, 68, começou a criticar as vacinas bem antes do surgimento do coronavírus, alegando que elas causam autismo –tese que foi rejeitada por especialistas médicos. Mas o teor de seus ataques se intensificou com a chegada das vacinas contra a Covid, trazendo um novo escrutínio não apenas às posições de Kennedy sobre elas, como também a outras causas heterodoxas nas quais ele gravitou ao longo dos anos.

Kennedy hoje diz que Sirhan Sirhan não matou seu pai, e pediu que os comissários de condicional da Califórnia o libertem. Ele repetiu uma teoria da conspiração popular de que as torres de transmissão de alta velocidade 5G estão sendo instaladas em todo o país "para coletar nossos dados e controlar nosso comportamento".

Em um novo livro best-seller, ele afirmou que Anthony Fauci, o principal consultor médico do presidente Joe Biden na pandemia de coronavírus, e Bill Gates, cofundador da Microsoft, estavam em conluio com a indústria farmacêutica para lucrar com as perigosas vacinas.

Ele acumulou um número significativo de seguidores nas redes sociais, onde divulga informações muitas vezes falsas sobre o coronavírus e as vacinas. No ano passado, Kennedy foi barrado no Instagram, onde tinha 800 mil seguidores, por espalhar desinformação em seus ataques à vacina. Sua página no Facebook, com mais de 300 mil seguidores, continua online, assim como sua conta no Twitter, com mais de 405 mil seguidores.

Kennedy recusou um pedido de entrevista, dizendo que estava ocupado com um julgamento sobre danos das vacinas em Jackson, no Tennessee. Ele também disse acreditar que o jornal New York Times não deu uma divulgação adequada a suas preocupações sobre a vacina e ignorou seu livro sobre Fauci, apesar da alta vendagem. Mas respondeu a algumas perguntas por email, dizendo que foi atraído para essa questão quando a mãe de uma criança com autismo levou diversos estudos que pretendiam mostrar uma ligação entre vacinas e a doença à sua casa em Cape Cod, e ficou lá até que ele os lesse.

"Percebi a enorme diversidade entre as narrativas oficiais promovidas pela indústria farmacêutica e os reguladores de saúde pública, por um lado, e a ciência publicada que eu estava lendo", escreveu Kennedy.

Ele disse que tentou discutir suas preocupações com as principais autoridades federais de saúde e que "essas conversas me deixaram com raiva suficiente para me envolver nessa batalha".

Cinco de seus oito irmãos sobreviventes –dois deles morreram– o repreenderam publicamente nos últimos dois anos por sua campanha contra vacinas, fato notável em uma importante família americana que tenta administrar seus problemas internamente. Para angústia visível de sua mulher, a atriz Cheryl Hines, Kennedy invocou em um comício em Washington a jovem escritora alemã-holandesa Anne Frank, que morreu num campo de prisioneiros nazista, comparando as medidas do governo contra a pandemia com o Holocausto. Mais tarde ele pediu desculpas por isso.

Desde os primeiros dias de infância na Virgínia, seus anos na Universidade Harvard, seu trabalho como cofundador da Waterkeeper Alliance, criada em 1999 para combater a poluição da água, Kennedy é conhecido como uma pessoa de energia obsessiva, apaixonado a ponto de ser exaustivo. Durante quase 40 anos, ele assumiu a missão de alertar sobre a contaminação por mercúrio –primeiro das usinas movidas a carvão e agora como conservante em algumas vacinas. Até seus críticos mais proeminentes dizem não duvidar de sua sinceridade, mesmo quando ele se tornou um dos mais proeminentes disseminadores de informação falsa sobre vacinas.

Fauci disse que, por instrução da Casa Branca de Trump, passou uma hora ouvindo Kennedy dar uma palestra sobre vacinas infantis nos Institutos Nacionais de Saúde. "Assim que o primeiro slide subiu, eu levantei a mão –eu disse: 'Bobby, não há dados'", narrou Fauci em uma entrevista. "Ele disse: 'nunca tenho a oportunidade de apresentar os fatos, então quero fazer uma apresentação, mas não quero ser interrompido até terminar'".

Quando acabou, Fauci acompanhou Kennedy na saída da sala de conferências.

"Eu disse: 'Bobby, sinto muito por não termos chegado a um acordo aqui'", disse. "'Embora eu discorde de tudo o que você está dizendo, entendo e respeito que no fundo está realmente preocupado com a segurança das crianças.' Eu disse isso de uma forma muito sincera."

Os amigos de Kennedy pediram que ele passasse para outras questões. "Às vezes você quer sacudi-lo e dizer: 'Jesus Cristo, Bobby, preste atenção em outra coisa'", disse Mike Papantonio, advogado e apresentador de programa de entrevistas que participou de processos judiciais com Kennedy. "Mas no fim das contas ele está comprometido com isso. As mandíbulas estão travadas."

Kerry Kennedy disse que continua valorizando as memórias de crescer com Bobby e que sempre vai admirar o irmão mais velho.

"Temos muito mais em comum do que nossas diferenças sobre vacinas, mas nesse assunto somos diametralmente opostos", afirmou ela. "Não posso dizer o quanto eu amo Bobby. É tão doloroso. É tão difícil."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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