Descrição de chapéu The New York Times Rússia

Eles previram a guerra da Ucrânia. Será que erraram ainda assim?

Visão do mundo como um tabuleiro de War é falha; evolução do conflito mostra que moral, liderança e sorte fazem diferença

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ross Douthat

Colunista do The New York Times, escreve sobre política, religião, valores morais e educação superior

The New York Times

Um aspecto curioso da discussão ocidental desde a invasão russa da Ucrânia é que uma escola de pensamento que previu alguma versão deste conflito vem sendo retratada como desacreditada porque suas previsões se concretizaram apenas parcialmente.

Entre os anos 1990 e a década de 2010, da oposição feita por George Kennan à expansão da Otan à crítica apresentada por John Mearsheimer ao envolvimento americano na Ucrânia, pensadores ligados ao realismo na política externa —a escola conhecida por suas previsões frias de conflito entre grandes potências, seu ceticismo em relação às visões idealistas da ordem mundial— argumentaram que a tentativa de integrar os países vizinhos à Rússia a instituições e alianças ocidentais estava envenenando as relações dos EUA com Moscou, elevando a probabilidade de conflito entre grandes potências e expondo países como a Ucrânia a riscos desastrosos.

Sombra de garoto projetada em bandeira da Ucrânia em protesto na cidade de Mariupol dois dias antes do início da guerra[
Bandeira da Ucrânia em protesto na cidade de Mariupol dois dias antes do início da guerra - Carlos Barria - 22.fev.2022/Reuters

"O Ocidente está levando a Ucrânia a buscar uma maneira ilusoriamente fácil de sair de uma situação difícil", afirmou Mearsheimer em 2015. "O resultado final disso é que a Ucrânia será devastada."

Mas, agora que a Ucrânia está, de fato, sendo devastada por uma invasão russa, muitos pensam que a visão de mundo realista de Mearsheimer também caiu em ruínas —que (citando o pensador português Bruno Maçães) ele "perdeu sua reputação e credibilidade" e (citando Anne Applebaum, da revista The Atlantic) a concepção realista das nações como "peças numa partida do jogo War", com "interesses ou orientações geopolíticas eternas, motivações fixas ou metas previsíveis" deve ser descartada com base nas evidências da invasão de Vladimir Putin e da resposta ucraniana.

A crítica mais ampla do realismo defendida por Applebaum e Maçães diz algo como: sim, realistas como Mearsheimer previram algum tipo de conflito em torno da Ucrânia. Mas as previsões do pensamento realista não descreveram a realidade, por três razões.

Para começar, as previsões imaginaram uma lógica defensiva por trás da conduta estratégica russa, baseada na proteção de uma esfera de influência e no medo do cerco pela Otan.

Mas a decisão de invadir parece ter sido motivada mais pelo desejo declarado e muito pessoal de Putin de restaurar uma visão mística da grande Rússia —uma visão ideológica grandiosa que dificilmente seria satisfeita por uma simples promessa do Ocidente de não admitir a Ucrânia na Otan.

Em segundo lugar, as previsões realistas subestimaram a autonomia e força dos próprios ucranianos, enxergando os países vizinhos da Rússia como uma paisagem onde a única coisa de importância real era a projeção de força da grande potência e ignorando a capacidade potencial da Ucrânia —demonstrada agora no campo de batalha— de resistir à Rússia e mobilizar apoio global, mesmo sem receber ajuda militar direta dos Estados Unidos ou da Otan.

Finalmente, as previsões realistas eliminaram a dimensão moral da política global, efetivamente legitimando os impulsos imperialistas e "colocando a culpa na vítima", por assim dizer, sendo que em última análise a responsabilidade moral pela agressão é do agressor, não de nações que estão apenas buscando autonomia ou autodefesa.

Como alguém que se considera realista (na medida em que faz sentido um colunista de jornal reivindicar tais afinidades), acho que parte dessa crítica é convincente.

Por exemplo, minha impressão é a de que, pelo fato de a maioria dos pensadores realistas atuais operarem dentro do Ocidente liberal e se definirem em oposição às posições morais piedosas deste (especialmente contra o utopismo globalista que ganhou tanta aceitação no pós-Guerra Fria), há uma tentação constante de pressupor que regimes não liberais devem ser atores mais racionais, mais realistas em suas práticas e seus objetivos, que os idealistas ingênuos da América ou Europa. Assim, quando ocorre uma crise, a culpa principal ou mesmo essencial só pode ser do irrealismo do Ocidente.

Podemos ver essa tentação em ação na entrevista que Mearsheimer deu a Isaac Chotiner da New Yorker, publicada pouco após o início da invasão russa. Por um lado, a entrevista oferece uma crítica realista perspicaz de como o idealismo conduziu a América para desvios na era de George W. Bush, graças a uma teoria ingênua de como uma guerra agressiva poderia democratizar partes do Oriente Médio.

Mas quando o assunto é a guerra agressiva de Putin, Mearsheimer parece pressupor que o presidente russo pensa como ele, o realista, não como os políticos utópicos do Ocidente.

Putin, diz ele, "compreende que não pode conquistar a Ucrânia e integrá-la numa grande Rússia ou numa reencarnação da antiga União Soviética". E, argumenta ele, se os EUA se esforçassem mais para "criar relações cordiais" com Moscou, poderia haver uma "coalizão equilibradora tácita" americano-russa contra o poder ascendente da China.

Mas por que Putin seria necessariamente imune à arrogância e às ilusões dos líderes ocidentais? Por que deveríamos supor que ele não sonha em reintegrar a Ucrânia e a Belarus a uma grande Rússia? Por que deveríamos dar como certo que a estratégia diplomática correta o atrairá para uma coalizão americana contra a China, sendo que ele pode, em vez disso, estar engajado com uma visão ideológica ampla de poder eurasiático aliado contra o Ocidente decadente?

Ou seja, por que devemos supor que as explicações estruturais e esquemáticas da guerra de Putin são mais importantes que as explicações pessoais e ideológicas?

Afinal, como aponta o historiador Adam Tooze, parece que muito poucos membros da elite de política externa russa —todos presumivelmente contrários à expansão da Otan, todos "dedicados ao futuro da Rússia como grande potência"— acreditaram que Putin fosse realmente invadir.

E se tantos participantes do regime de Putin, todos servos fiéis do interesse nacional, conforme a definição feita pelos realistas, não teriam feito a escolha fatídica dele, se pudessem decidir, então será que as premissas realistas de fato previram a guerra propriamente dita?

Igualmente importante, será que previram o rumo que a guerra vem seguindo até agora? Eu mesmo não o fiz: imaginei que a Ucrânia pudesse apresentar uma resistência forte na parte ocidental de seu território, mas que a Rússia chegaria sem grande dificuldade ao rio Dnipro e provavelmente botaria o governo de Volodimir Zelenski para correr —alguma versão dessa premissa foi compartilhada pela inteligência dos EUA, que previu a queda rápida de Kiev dois dias depois de iniciada a guerra.

Após duas semanas de ofensivas paralisadas e baixas russas crescentes, essa premissa falha parece um pouco uma visão de mundo semelhante à de um tabuleiro de War, onde só o que vem ao caso são posicionamento e peças, não patriotismo, moral, liderança e sorte.

Mas agora me permita dizer uma coisa em defesa do realismo: o que descobrimos neste inverno é que o poder agressivo russo é mais fraco e o poder ocidental unido é mais forte do que previram muitas análises feitas antes da guerra. Ou seja, que o declínio dos EUA e a decadência da Europa não estão tão avançados quanto têm parecido por vezes ultimamente.

Entretanto, olhe para a resposta global à guerra na Ucrânia —o apoio tácito dado por Pequim à Rússia; a neutralidade da Índia; as reações cautelosas dos estados do Golfo, movidas por seus interesses próprios— e você verá a paisagem cuja emergência provavelmente encorajou Putin a fazer sua aposta: um mundo onde a hegemonia dos EUA está em queda, onde novas grandes potências e "Estados-civilizações" estão determinados a lutar por seus interesses próprios e onde os sonhos de universalismo moral e consenso liberal dos anos 1990 estão dando lugar às realidades ásperas das diferenças culturais, do relativismo moral e da competição política pós-liberal.

Na verdade, até mesmo a mobilização da Europa contra a Rússia, a conversa sobre rearmamento e independência energética se encaixa nesse molde porque representa um reconhecimento nascente do interesse continental, tanto quanto uma manifestação de idealismo cosmopolita. Sim, o exemplo inspirador de Zelenski é importante, mas a realidade fundamental é que, sob condições de ameaça e concorrência, a Europa está encurtando suas férias da história e começando a comportar-se como uma grande potência, ela própria —exatamente como prevê a teoria realista.

E, se essas condições ameaçadoras e competitivas estão um pouco mais favoráveis ao Ocidente do que aparentava ser o caso três semanas atrás, elas ainda são fundamentalmente hostis ao tipo de liberalismo cruzadista que foi tão forte nas presidências Clinton e Bush e se prolongou nos anos Obama.

O que ganhamos até agora com os tropeços da Rússia é a chance de alcançar um equilíbrio de poder mais favorável num mundo multipolar, e isso é muito bom. Mas a guerra está longe de ter acabado, e o resultado bom mais plausível ainda é a paz do realista, não um triunfo de idealista –uma paz que provavelmente ainda deixará Putin no poder, com a Crimeia e a região do Donbass em suas mãos e a Rússia mais integrada com (e subordinada a) nossos rivais em Pequim.

Podemos ter esperança de um resultado melhor, em que os russos se sublevem, a revolução democrática floresça e (nos termos poéticos dos anos 1990) "esperança e história rimem"? Com certeza: um realismo que exclui possibilidades idealistas é ele próprio irreal. Mas, num conflito com uma potência nuclear, travada num país que faz fronteira com essa potência, buscar esse resultado ideal como nossa meta primária —ou seja, buscar vitória total e uma mudança de regime, em lugar de estabilidade provisória— é cortejar desastres ainda piores do que os que nos acometeram em qualquer guerra recente.

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.