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Eliminar testes padronizados é mais útil do que ações afirmativas, diz historiador Ibram X. Kendi

Americano defende alternativa às cotas raciais como meio mais efetivo para levar jovens negros às universidades

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Washington e São Paulo

Para o pesquisador antirracista Ibram X. Kendi, abolir testes padronizados pode ser um caminho mais efetivo para levar mais jovens negros às universidades do que a adoção de ações afirmativas.

Nos EUA não há cotas nos mesmos moldes utilizados no Brasil. As ações variam conforme a lei em cada estado, e há regiões que permitem considerar o fator racial nas avaliações de admissão, como uma forma de levar diversidade para as instituições. Em outros locais, a prática não é permitida.

O historiador Ibram X. Kendi, diretor do Centro de Pesquisa Antirracista da Universidade de Boston
O historiador Ibram X. Kendi, diretor do Centro de Pesquisa Antirracista da Universidade de Boston - Stephen Voss/Oregon State University/Divulgação

Esse tipo de iniciativa começou nos anos 1960, foi chancelado pela Suprema Corte americana, mas novos questionamentos podem levar o tribunal a rever a decisão. "Como resultado da pandemia, muitas universidades altamente seletivas tornaram os testes de admissão algo optativo. Assim, muitas delas receberam números recordes de candidatos de famílias de baixa renda e de pessoas não brancas. E terminaram admitindo turmas que eram tão qualificadas quanto as anteriores", diz Kendi.

"Sabemos que resultados em testes padronizados são mais um reflexo da riqueza e da renda das famílias do que a perspectiva da performance de um estudante na faculdade. E pessoas brancas têm dez vezes mais riqueza do que pessoas negras nos Estados Unidos", aponta o acadêmico.

Kendi, 39, diretor do Centro de Pesquisa Antirracista da Universidade de Boston, publicou nos últimos anos livros sobre como ser antirracista e a origem de ideias racistas e da comunidade negra nos EUA.

Em "Marcados", por exemplo, mapeia como diversos pensadores europeus buscaram uma base teórica para justificar a escravização de africanos, com interpretações bíblicas e a tentativa de comparar negros a animais —Kendi afirma que muitas das ideias daquela época ainda circulam, como argumento para justificar a desigualdade social. À Folha o escritor também falou sobre liberdade de expressão para ideias racistas, as políticas do governo de Joe Biden para os negros e o trabalho que faz voltado para crianças.

Como a sociedade pode conter a circulação de ideias racistas e conciliar isso com a liberdade de expressão? Há ideias e coisas que as pessoas dizem que são desprezíveis, erradas, amáveis, exageradas. Mas as pessoas devem ter o direito e a liberdade de dizer essas coisas. E as pessoas devem também ter a liberdade de descrevê-las como racistas, ou antirracistas, ou desprezíveis, ou boas, ou exageradas etc.

Também devemos ter um mundo educado e sociedades em que as pessoas possam discernir entre visões racistas e antirracistas. Outro desafio é que a maioria das pessoas que expressam visões racistas não sabe que é racista. E mesmo alguém dizendo que são racistas, elas se recusam a reconhecer isso.

E como educar melhor as pessoas sobre isso? Ajudaria se sistematicamente ensinarmos às crianças, por meio das escolas, dos adultos e da mídia, a história do racismo. É importante descobrirmos formas de engajar nossas crianças, como pais, professores, cuidadores, e ensinar a elas que o racismo é o problema, não as pessoas de pele mais escura. Ensinar que a desigualdade existe, como resultado de más políticas, não de más pessoas. Ensinar que há diferentes culturas e diferentes formas de ser e de olhar o mundo.

Devemos apreciar e abraçar essa diferença. É o que faz nosso país, nosso mundo, ser bonito. Temos que ensinar ativamente nossas crianças, e meu próximo livro é sobre isso, como criar um antirracista, para que os cuidadores possam fazer isso com a próxima geração.

A Suprema Corte dos EUA analisa atualmente um questionamento às ações afirmativas. O senhor avalia que há risco de redução nas ações para ajudar os negros a acessarem universidades? As ações afirmativas são um fator menor de admissão. Há outros fatores maiores. Sabemos que resultados em testes padronizados são mais um reflexo da riqueza e da renda das famílias do que um indicador de que um estudante se dará bem na faculdade. E pessoas brancas têm dez vezes mais riqueza do que pessoas negras nos Estados Unidos. Então, os SATs [espécie de Enem dos EUA] garantem tratamento especial para certos grupos de pessoas que têm dinheiro, e pessoas brancas e asiático-americanas são desproporcionalmente ricos. O problema não são as ações afirmativas, mas que os principais fatores de admissão sejam classificados como racialmente neutros, quando são tudo menos isso.

E como corrigir este problema? Como resultado da pandemia, muitas universidades altamente seletivas tornaram no ano passado os testes de admissão algo optativo. Assim, muitas delas receberam números recordes de candidatos de baixa renda e não brancos. E terminaram admitindo turmas que eram tão qualificadas quanto as anteriores. Então, mais e mais universidades estão indo para o modelo de teste opcional, porque sabemos que, com provas padronizadas, certos estudantes têm a capacidade de pagar um curso preparatório caro e, assim, obter mais pontos.

Como avalia as críticas ao movimento Black Lives Matter? Em 2020, milhões de pessoas por todos os Estados Unidos, das menores cidades às metrópoles, foram a protestos do Black Lives Matter [vidas negras importam]. E estudos desde então têm mostrado que 93% desses atos foram pacíficos, e o pequeno percentual restante foram não pacíficos. Na maioria dos casos, eles não foram pacíficos porque a polícia agiu com violência contra os manifestantes. Então, empiricamente, ao menos na mais recente revolta, sabemos que os manifestantes do Black Lives Matter eram, de forma quase completa, pacíficos.

Infelizmente, algumas pessoas acham que o problema não é, digamos, a violência policial, mas as pessoas protestando contra a violência policial. Acham que o problema não é o racismo estrutural, mas as pessoas se expressando contra isso. O problema não é o fato de que vidas negras, em muitos casos, não importam, mas as pessoas que dizem que as vidas negras importam? Não acho que isso está certo.

Alguns críticos ao movimento antirracismo dizem que o foco em questões raciais e em identidades baseadas em raça e gênero não é uma boa ideia, porque dividiria a sociedade, e que a melhor saída seria lugar por igualdade para todos. Como vê este argumento? Esta visão pressupõe que grupos raciais são iguais e que deveríamos ver o problema como más políticas, como oposição a más pessoas. O que é realmente divisivo é tratar cada grupo particular como se eles fossem superiores ou inferiores porque são mais claros ou mais escuros. O que é realmente divisivo é ignorar as disparidades raciais e as desigualdades na nossa sociedade e então culpar as pessoas mais escuras, que estão morrendo e que estão na parte mais baixa destas disparidades, pela existência dessas desigualdades.

Nós devemos apreciar todas as culturas. A diversidade humana é o que torna a humanidade linda. E é um desafio que algumas pessoas não pensem assim e queiram privilegiar culturas ou grupos específicos.

O senhor fala sobre a importância de combater políticas públicas racistas. Qual delas deveria ser mudada com mais urgência? Do Brasil aos EUA, pessoas negras têm chances maiores de serem assassinadas pela polícia. Há todo um conjunto de políticas por trás disso, mas uma delas é a nossa decisão, como nação, de dizer "o que é preciso nessas comunidades negras: mais polícia em vez de outros recursos".

Como avalia as ações do governo Biden para combater o racismo? Foi algo incrivelmente importante os democratas terem apresentado duas leis sobre direito ao voto, para conter a quantidade massiva de "gerrymandering" racial [mudar distritos eleitorais para favorecer um partido] e a supressão de votos [burocracias para desencorajar eleitores de votar]. E foi incrivelmente difícil e prejudicial o fato de que todos os senadores republicanos centristas rejeitaram essas leis, e dois senadores democratas rejeitaram acabar com o filibuster [procedimento que permite à minoria barrar projetos no Senado], o que abriria caminho para reforçar uma democracia multirracial na América.

Como vê o movimento antirracismo no Brasil e na América Latina? Observo de longe e vejo muita organização. Estou vendo escritores negros brasileiros realmente emergindo, e o trabalho deles sendo lido em níveis sem precedentes no Brasil, especialmente os trabalhos sobre racismo.


Raio-x

Ibram Kendi, 39

Historiador, é diretor e fundador do Centro para Pesquisa Antirracista da Universidade de Boston. Nasceu na cidade de Nova York, cresceu em Manassas (Virgínia) e se formou em jornalismo e estudos afro-americanos na universidade Florida A&M, em 2004. Seis anos depois, tornou-se doutor em estudos afro-americanos pela universidade Temple. Foi professor universitário e pesquisador visitante em várias instituições dos EUA. Autor de oito livros, venceu o National Book Award de não-ficção, em 2016. Também colabora para a revista The Atlantic e apresenta o podcast Be Antirracist (seja antirracista).


Livros do autor

Lançados no Brasil

  • "Como ser Antirracista?" (Editora Alta Cult, 2020)
  • "Marcados: Racismo, Antirracismo e Vocês", com Jason Reynolds (ed. Galera, 2021)

No exterior

  • "The Black Campus Movement: Black Students and the Racial Reconstitution of Higher Education, 1965-1972" (o movimento Black Campus: estudantes negros e a reconstrução racial do ensino superior, ed. Palgrave Macmillan, 2012)
  • "Stamped From The Beginning: The Definitive History of Racist Ideas in America" (marcados desde o início: a história definitiva das ideias racistas na América, 2017, ed. Bold Type Books, livro vencedor do National Book Award)
  • "Four Hundred Souls: A Community History of African America" (quatrocentas almas: uma história comunitária da América africana), com Keisha N. Blaim (ed. One World, 2021)
  • "Antiracist Baby" (bebê antirracista, ed. Penguin, 2020, infantil)

A serem lançados em junho, nos EUA

  • "How to Raise an Antiracist" (como criar um antirracista)
  • "Goodnight Racism" (boa noite, racismo, infantil)
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