Em êxodo para o Ocidente, ucranianos fogem da guerra para futuro incerto

Cidadãos levam pouca comida, mas contam com solidariedade de compatriotas ao longo da lenta viagem

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Valerie Hopkins
Viitivtsi (Ucrânia) | The New York Times

As famílias chegaram a uma pequena pré-escola de duas salas à 1h, exaustas depois da longa viagem de suas casas em Cherkasy, a 480 km de distância. Com medo da invasão russa, decidiram que era hora de partir rumo às regiões mais seguras do oeste da Ucrânia, ao lado de dezenas de milhares de pessoas.

A viagem foi demorada. As estradas estavam congestionadas, cheias de ucranianos partindo no mesmo êxodo. Quando se acomodaram para dormir por algumas horas em camas feitas para crianças de quatro anos, sirenes começaram a tocar no prédio administrativo vizinho, alertando para um ataque aéreo.

Crianças em trem usado para retirar pessoas de Kiev
Crianças em trem usado para retirar pessoas de Kiev - Lynsey Addario - 3.mar.22/The New York Times

Na manhã seguinte, com neve caindo no pátio, Karolina Tupitska, 11, e sua irmã menor, Albina, escovaram os dentes, brincaram com um cachorrinho e prepararam o espírito para mais um longo dia na estrada. Estavam indo para a Polônia com a mãe delas, Lyuba. "Meus avós e meu pai ficaram em Cherkasi", contou Karolina, dizendo que ficara triste por não poder levar seu hamster branco, Pearl.

Na Ucrânia, todos que possuem meios para isso estão na estrada, deslocados por uma guerra que parecia inimaginável, mas que acabou chegando. As pessoas fogem do perigo físico, é claro —os ataques de artilharia que já destruíram hospitais, praças e prédios de apartamentos—, mas também do desespero das condições de guerra evidentes na escassez de alimentos, perda do trabalho e falta de medicamentos.

Mais de 1 milhão de ucranianos fugiram para países vizinhos nos últimos sete dias, segundo a ONU. Outro milhão está deslocado dentro de seu país. Organizações humanitárias descrevem o que está acontecendo como uma das maiores crises humanitárias na memória recente. A União Europeia disse na quinta-feira (3) que dará proteção legal temporária a ucranianos para viverem e trabalharem no bloco por até três anos. Os EUA também informaram que oferecerão status protegido temporário a ucranianos.

Irina Boicharenko, 19, que também veio de Cherkasi, dormia numa das salas da pré-escola com sua família. As paredes da escola estavam pintadas com quadrinhos da era soviética: um lobo tocando acordeão, um asno como uma balalaica e um urso usando "vishivanka", um traje ucraniano tradicional.

"Entrei no carro e comecei a chorar", contou Irina. "Comecei a chorar porque me dei conta: estou deixando meu país, fugindo da guerra. É uma sensação horrível."

A principal rodovia nacional em sentido oeste, a E-50, está congestionada. O trajeto de Kiev a Lviv, que normalmente leva sete horas de carro, está levando dias. Os carros precisam passar por dezenas de postos de controle improvisados com barreiras antitanque de aço e postos de observação de concreto.

Partes do leste e sul da Ucrânia estão sendo esvaziadas de seus habitantes. Na quinta, o tráfego estava tão parado que as pessoas estavam tendo que fazer as necessidades fisiológicas numa valeta ao lado da estrada. As prateleiras dos postos de combustíveis ao longo do caminho estavam quase vazias. A maioria das famílias, como a de Irina, levou comida suficiente de casa para lhes durar alguns dias.

Mas ao longo do caminho também se viam alguns sinais animadores. A bandeira ucraniana —amarela para representar trigo, e azul para indicar o céu— era visível em toda parte, numa manifestação de solidariedade e orgulho nacional que tomou conta desse país de 44 milhões de habitantes desde que a Rússia o invadiu pela primeira vez em 2014. Em hotéis superlotados, famílias locais ofereciam colchonetes e cobertores para viajantes que buscavam espaços para dormir no chão dos corredores.

Em muitas ruas e estradas veem-se outdoors criticando os russos. Uma mensagem comum é uma frase obscena em russo dirigida aos soldados russos. É um meme que começou depois de soldados ucranianos numa ilha terem gritado o mesmo xingamento a um navio militar russo. Os soldados foram feitos prisioneiros, mas o incidente, que foi filmado, acabou representando a resiliência e o estilo com que muitos ucranianos, incluindo o presidente, vêm enfrentando uma guerra que não queriam.

Em outros lugares, a sinalização de estradas havia sido removida, atendendo às ordens de autoridades municipais, numa tentativa de confundir os invasores russos. Um viajante, Anton, contou que estava levando sua família de carro de Kiev à cidade de Ternopil, no oeste, depois de terem passado cinco noites num abrigo antibombas. Como outras pessoas entrevistadas para esta reportagem, Anton só quis informar seu primeiro nome, temendo por sua segurança. Ele disse que estava otimista, apesar das dificuldades, devido à união e à força que o Exército de seu país vem demonstrando contra os russos.

Anton não é o único a acreditar numa vitória da Ucrânia. Simultaneamente ao fluxo pesado de refugiados em direção oeste, o trânsito também era pesado nas pistas em direção leste, rumo a Kiev. Segundo um post no Facebook da agência ucraniana de segurança nas fronteiras, mais de 50 mil cidadãos ucranianos residentes no exterior retornaram ao país para engrossar as fileiras do esforço de guerra.

Num hotel em Viitivtsi chamado Ninho da Andorinha, hóspedes lotavam todos os cantos disponíveis. Uma mulher e sua filha dormiam num saguão do segundo andar, debaixo de um piano. Do lado de fora, carros faziam fila à margem da estrada. Com o toque de recolher das 20h chegando perto, seus ocupantes tentavam ver onde poderiam dormir. A proprietária do hotel, Larisa Mahlyovana, disse que antes da guerra o estabelecimento era muito usado para festas de casamento. Agora, porém, está lotado de pessoas em busca de abrigo na noite gelada. Ela as está acolhendo gratuitamente.

"No começo as pessoas estavam dormindo em cima de caixas de papelão, mas lançamos um pedido de ajuda, e em questão de horas havia gente doando colchonetes, travesseiros e cobertores", contou Mahlyovana. "Ninguém consegue ficar indiferente." Para a mulher dormindo debaixo do piano, Natasha, era a segunda vez que fugia para o Ocidente desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em 2014.

Natasha tem 36 anos e veio originalmente de Luhansk, enclave separatista russo no leste do país. Sua filha de 7 anos "nasceu debaixo de bombas", disse ela, que depois disso abandonou a região e radicou-se num subúrbio de Kiev. Conseguiu trabalho como costureira e fez amizade com outra pessoa fugida do outro território separatista, Donetsk. Agora ela está fugindo novamente.

"Já reconstruí minha vida uma vez", disse, enquanto sua filha brincava com uma vela.

Uma sirene tocou, alertando para um ataque aéreo, e todos os presentes desceram por uma escada metálica para o porão gelado. Segurando sua filha no colo, Natasha a beijou e lhe disse que tudo ficaria bem. Quando saiu do abrigo, ela disse que estava feliz porque, desta vez, pelo menos, o mundo está prestando atenção. "Graças a Deus que agora o mundo inteiro está do nosso lado", comentou.

Tradução de Clara Allain

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