Europa tem duplo padrão de acolhimento de refugiados, diz ex-diretor do Acnur

Jeff Crisp afirma ser evidente diferença do tratamento dado a ucranianos em comparação a fluxos de não europeus

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São Paulo

Com 35 anos de experiência em instituições internacionais voltadas a refugiados, o britânico Jeff Crisp se diz positivamente surpreso com a receptividade da Europa aos ucranianos que fogem da guerra. O outro lado desse acolhimento, porém, é ter exposto a diferença com que esses mesmos países lidam com refugiados de outras nacionalidades, como sírios e afegãos.

Em entrevista à Folha, Crisp, que foi diretor de políticas do Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) e da Comissão Global para Migrações Internacionais, analisou o que está por trás desse "duplo padrão" de acolhimento, as razões para o êxodo ucraniano ser tão veloz e os impactos que essa migração em massa deve ter sobre o sistema humanitário global.

Mulher em abrigo para refugiados da guerra na Ucrânia na cidade de Rzeszow, na Polônia
Mulher em abrigo para refugiados da guerra na Ucrânia na cidade de Rzeszow, na Polônia - Kacper Pempel - 20.mar.22/Reuters

"É provável que os países europeus se tornem ainda mais restritos a refugiados de outras partes do mundo", afirma.

Para Crisp, não existe uma crise global de refugiados, já que eles estão concentrados em poucos países —85% deles, no Sul global. "Com a crise da Ucrânia pode ser que essa proporção mude ligeiramente, mas o equilíbrio não vai mudar, mesmo com um êxodo de mais de 3 milhões de ucranianos."

Com mais de 3 milhões de pessoas escapando do país em menos de um mês de conflito, o êxodo ucraniano é um dos mais rápidos da história europeia. Quais são as razões para tantos saírem em tão pouco tempo? Em primeiro lugar, a brutalidade da invasão russa. Os ataques têm se concentrado em áreas urbanas, onde estão os civis. Quando bombas caem toda noite na sua cidade, não surpreende que você faça de tudo para sair. Outro motivo é o fato de a Ucrânia fazer fronteira com vários países, o que dá opções a quem quer fugir. Muitos ucranianos têm amigos e familiares nesses países, e sabemos que as pessoas são mais propensas a sair quando têm alguém para recebê-las do outro lado.

O fato de as fronteiras estarem abertas para o povo ucraniano, é claro, também é um incentivo para migrar. Em outros contextos, se você acha que não te deixarão entrar ou que receberá um tratamento péssimo, você hesita mais em sair.

E eu acrescentaria uma quarta razão não tão óbvia, que é a qualidade dos transportes na Ucrânia. Até os trens continuaram funcionando. Em alguns movimentos de refugiados, é preciso andar longas distâncias a pé. Na Ucrânia, dá para pegar carro, trem ou ônibus e se deslocar rapidamente. É um incentivo.

Essa abertura das fronteiras aos ucranianos gerou comparações com a resposta da Europa a outros fluxos de refugiados recentes, como os do Oriente Médio. Há um duplo padrão de acolhimento? Claramente há um duplo padrão. A atitude em relação aos requerentes de asilo na Europa tem sido bastante negativa desde 2015, quando chegou um grande número de refugiados, especialmente sírios. Países do Leste Europeu como Hungria e Polônia vêm obstruindo a União Europeia de manter uma política mais aberta.

Por isso, mesmo os que somos experientes nessa área de refugiados ficamos surpresos, agradavelmente surpresos, de ver essa reação positiva da Europa aos ucranianos. Mas isso contrasta com o que ocorreu apenas meio ano atrás, quando o Talibã tomou o poder no Afeganistão e o tom geral era de que seria um desastre a chegada maciça de afegãos. E, agora, estes mesmos países dizem: "Vamos ser o mais generosos possível com os ucranianos".

Esse duplo padrão tem origem racista? Não dá para negar isso. Os ucranianos são percebidos como mais "parecidos conosco" na Europa: brancos, cristãos, estilo de vida semelhante. Eles não são associados ao terrorismo, como refugiados do Iraque, da Síria, do Irã, que enfrentam muitos preconceitos.

Mas há debates interessantes acontecendo, sobre até que ponto devemos esperar que o público tenha uma atitude absolutamente igual em relação a todos os estrangeiros. Alguns colegas argumentam que é natural sentir mais compaixão por aqueles de quem nos sentimos mais próximos.

Não tenho muita clareza nessa discussão. Concordo que há elementos de racismo, mas também vejo lógica no argumento de que é normal dar mais apoio às pessoas mais próximas.

Que outras razões contribuem para a grande abertura aos refugiados ucranianos? Um dos motivos é o fato de que este é um conflito amplamente coberto pela mídia. Sabemos que coisas ruins acontecem em algumas partes da África e da Ásia, mas a publicidade que esses acontecimentos recebem não é nada perto da cobertura do conflito da Ucrânia. As pessoas veem a guerra acontecendo em tempo real na TV, e por isso é mais provável que sejam acolhedoras com os ucranianos.

O terceiro elemento é que a vasta maioria dos refugiados deixando a Ucrânia são mulheres e crianças. Não estou dizendo que concordo com isso, mas me parece que, nos países de asilo, homens jovens acabam sendo vistos como uma ameaça potencial, enquanto receber mulheres, crianças e idosos parece ser menos arriscado. No entanto, uma questão que eu coloco é se essa receptividade que vimos nas últimas semanas será sustentada.

Pode ser que os ucranianos deixem de ser bem-vindos, caso a crise se prolongue? Temos que observar o que vai acontecer se eles tiverem que ficar nesses países não apenas por meses, mas anos ou até mesmo para sempre. Pode ser que a população passe a ver esses refugiados como um fator de pressão para seus serviços públicos. Polônia e Moldova já disseram que não têm capacidade para receber mais gente.

Outra questão a ser levada em conta é que, se no primeiro momento os ucranianos estão indo para países vizinhos, depois muitos vão acabar indo para Alemanha, Áustria, países mais ricos do oeste e do norte da Europa. A Suécia já expressou preocupação com o número de ucranianos que chegam lá.

Há a expectativa de que os ucranianos fiquem no exílio por um longo período? Ou eles devem voltar assim que as coisas melhorarem? Uma coisa que aprendi nesses 35 anos trabalhando com refugiados é que mesmo movimentos que parecem ser de curto prazo quase sempre duram bem mais que o esperado.

Consigo pensar em poucas situações que foram resolvidas imediatamente. Uma delas foi em 1999, quando um grande número de refugiados partiu do Kosovo para Macedônia e Albânia. Em três ou quatro meses a maior parte deles voltou. Mas isso é muito incomum. Em geral, leva mais tempo. E de qualquer maneira nem todos os refugiados escolhem voltar, mesmo que a situação melhore em seu país de origem.

Por quê? Primeiro, pelo nível de devastação econômica e de destruição deixada pela guerra. Por que você voltaria a um país onde não terá um emprego, onde seu apartamento foi bombardeado, onde você precisa começar do zero? Depois há a questão do trauma. Alguns ficaram tão traumatizados pela experiência que só o pensamento de voltar já se torna insuportável. E à medida que os refugiados se integram ao novo país, sentem-se menos inclinados a regressar, especialmente os que têm filhos. As crianças vão à escola, aprendem a língua, fazem amigos e passam a se sentir pertencentes àquele país. É comum os pais decidirem ficar porque acham que é melhor para os mais jovens da família.

Muitos refugiados dizem que, mesmo se voltarem, o país que deixaram já não é o mesmo. Não é o mesmo país que eles deixaram, e eles também não são as mesmas pessoas que eram quando saíram. Não dá para voltar no tempo e reverter a história.

Alguns governos alegam razões de segurança para não receberem refugiados islâmicos. Até que ponto é uma preocupação legítima e até que ponto é islamofobia? Não podemos negar que houve refugiados do Oriente Médio envolvidos em incidentes terroristas ou de assédio sexual nos países de asilo. Mas esses atos são exagerados por políticos e recebem cobertura desproporcional da mídia. No Reino Unido, a maioria dos envolvidos em atos terroristas são cidadãos britânicos.

Nos Estados Unidos, um amplo estudo mostrou que a proporção dos refugiados envolvidos em atos terroristas é muito, muito pequena. O terrorismo da extrema direita parece ser muito mais ameaça.

Muitos desses refugiados estão inclusive fugindo do terrorismo em seus países. Muitos são vítimas do crime do qual são acusados. Não sou adepto de fronteiras completamente abertas e sou a favor de que os governos verifiquem quem entra no país. O problema é pegar como alvo grupos específicos com base em informações imprecisas.

Há quem se oponha a receber refugiados de culturas e religiões diferentes para proteger uma certa identidade europeia. Isso faz sentido em uma sociedade global? Há poucos países relativamente homogêneos. Um deles é a Coreia do Norte, mas quem quer ir para a Coreia do Norte? Mesmo o Japão, que adota políticas migratórias muito restritivas, já começa a reconhecer que precisa abrir seu mercado de trabalho para estrangeiros, pois a população está envelhecendo, eles precisam de pessoas para trabalhar, especialmente para o setor de cuidados.

Tudo aponta para um mundo em que os países vão se tornar multinacionais, multiculturais e mistos. E governos que tentam resistir a essa tendência vão perceber que a história não está do seu lado.

Como deve ficar a situação dos refugiados de outras nacionalidades depois desse grande êxodo ucraniano? Seria ótimo que o acolhimento aos ucranianos levasse a uma atitude mais positiva em relação aos refugiados em geral. Mas o que deve acontecer é os governos europeus se tornarem ainda mais restritivos a pessoas de outras partes do mundo. Eles vão dizer: fomos generosos, mas recebemos tantos ucranianos que não podemos acolher pessoas da África, do Oriente Médio, da América Latina.

Deve haver uma concentração de recursos humanitários na crise ucraniana? O sistema humanitário global já estava sob grande pressão antes desse conflito. Quando as Nações Unidas emitem apelos para refugiados de Mianmar, Síria, Sudão etc., só recebem 30% ou 40% do que precisam. Agora, levando em conta o protagonismo da Ucrânia na geopolítica mundial, os países que contribuem para programas humanitários vão ficar tentados a direcionar os recursos para os ucranianos.

Uma minoria dos refugiados está em países ricos. A crise na Ucrânia pode mudar isso? Oitenta e cinco por cento dos refugiados são acolhidos por países do Sul global, e por isso sou contra a ideia de crise mundial de refugiados. Esse conceito se popularizou bastante após a emergência de 2015-2016 na Europa, mas é uma percepção falsa e muito conveniente para os países desenvolvidos, pois é como se eles fossem igualmente afetados. Com a crise da Ucrânia, pode ser que essa proporção mude ligeiramente, mas o equilíbrio não vai mudar significativamente, mesmo com um êxodo de mais de 3 milhões.

Raio-X

Jeff Crisp, 68

Pesquisador do Centro de Estudos de Refugiados da Universidade de Oxford, fellow de direito internacional no instituto Chatham House e PhD em estudos africanos pela Universidade de Birmingham. Foi diretor de políticas do Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados), da Refugees International e da Comissão Global para Migrações Internacionais. Trabalhou para o Conselho Britânico de Refugiados e para a Comissão Internacional de Questões Humanitárias

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