Sinais de alerta contra possíveis fraudes, canais de mídia estatal e privada alinhados a um único partido, ambiente interno polarizado. A eleição marcada para o dia 3 de abril na Hungria já era um caldeirão borbulhante antes da invasão da Rússia na Ucrânia.
Com a guerra, um novo ingrediente efervescente foi adicionado à reta final da campanha. Mas, segundo especialistas, o cenário arquitetado nos últimos anos pelo primeiro-ministro Viktor Orbán é robusto o suficiente para garantir suas vantagens, ao menos no curto prazo.
Líder de um país que faz parte da União Europeia e da Otan, a aliança militar no centro do debate sobre o conflito no Leste Europeu, Orbán posicionou nos últimos anos a Hungria como um país bastante amigo –o maior dentro da UE– do presidente russo, Vladimir Putin, deixando para trás sua posição antissoviética.
No começo de fevereiro, quando a escalada militar se desenhava, o premiê viajou a Moscou, em "missão de paz", como definiu. "O presidente disse que as demandas da Rússia por garantias de segurança são normais e deveriam estar na base das negociações. Concordo, temos que negociar", disse ele na ocasião.
Acrescentou que a Rússia não tinha intenções de avançar em território ucraniano, ainda que mais de 100 mil homens estivessem nas fronteiras havia meses, e afirmou que as sanções em discussão pelos seus próprios aliados estavam "destinadas ao fracasso". Três semanas depois, lá estava Orbán condenando a invasão russa e dizendo sim às sanções impostas pelo bloco europeu. "A Hungria vai apoiar as sanções. O que os líderes da União Europeia concordarem nós aceitaremos e apoiaremos", afirmou.
Nem todas, porém. No dia 11, como participante do encontro de líderes europeus em Versalhes, na França, afirmou que o bloco não vai impor restrições que atinjam o gás e o petróleo fornecidos pela Rússia, dos quais a Hungria é dependente. "A questão mais importante para nós foi resolvida de maneira favorável."
A exemplo de outros políticos europeus da direita nacionalista próximos a Putin, como a francesa Marine Le Pen e o italiano Matteo Salvini, também Orbán se viu obrigado a manobrar suas posições depois da invasão. De um lugar mais delicado, no entanto, não só devido ao cargo proeminente, mas pelas relações econômicas nutridas entre os dois países. O premiê húngaro e o presidente russo, por exemplo, negociam um projeto de energia nuclear de cerca de 12 bilhões de euros e, no ano passado, assinaram um acordo de 15 anos para o fornecimento de gás, o que ajuda a manter os preços baixos para a população de seu país.
Se publicamente Orbán procura se alinhar à UE e à Otan, dentro da Hungria a impressão é outra. Desde que foi escancarado o conflito, opositores relatam haver uma campanha de desinformação pró-Rússia sendo veiculada em canais de comunicação ligados ao partido do primeiro-ministro, o Fidesz. No início de março, manifestantes protestaram em frente à sede da TV estatal, em Budapeste.
Entre as teorias falsas que circulam, segundo o site Politico, estão a de que a CIA americana ajudou a colocar Volodimir Zelenski na Presidência da Ucrânia, de que os Estados Unidos incitaram a Rússia a invadir o vizinho e de que as armas ucranianas seriam vendidas para terroristas na França.
Em artigo publicado no site do Conselho Europeu de Relações Exteriores, o sociólogo húngaro Tibor Dessewffy afirma que a guerra na Ucrânia forçou Orbán à sua mudança retórica mais dramática até agora. Mas isso seria algo contornável. "Orbán parece um DJ que mantém seu set em movimento misturando diferentes samples e linhas de baixo, sempre operando por instinto. Claro, ele tem enorme vantagem diante de um império de mídia controlado pelo Estado, o que lhe permite filtrar sons dissonantes", afirmou.
Desde que chegou ao poder, em 2010, pelo Fidesz, de ultradireita, Orbán promoveu uma série de mudanças nas instituições húngaras que o fizeram acumular poderes e desequilibrar o jogo a seu favor.
Fez trocas no Judiciário, na Constituição, na lei eleitoral e obteve o controle da imprensa. Com discurso nacionalista, anti-imigração e anti-LGBTQIA+, conta com apoio majoritariamente da população mais velha, mais pobre e moradora das áreas rurais. Na votação de 3 de abril, o primeiro-ministro terá como concorrente, pela primeira vez, uma frente única de partidos. Chamada de Unidos pela Hungria, reúne sete siglas e movimentos, de socialistas até o principal adversário de Orbán em 2018, o partido Jobbik, de direita. O nome que encabeça a coalizão é o de Péter Márki-Zay, prefeito de uma cidade no sudeste do país.
Segundo a pesquisa mais recente, do instituto Medián, no fim de fevereiro, Orbán tinha 39% das intenções de voto, à frente da chapa única, com 32%. No entanto, 20% se diziam ainda indecisos.
"Com as reformas que ele implementou, ficou muito difícil para a oposição", diz à Folha Simona Guerra, professora de questões contemporâneas na política da Universidade de Surrey, no Reino Unido, na qual pesquisa democracia e euroceticismo. "Ele fez tudo o que era possível para tornar impossível a oposição voltar ao poder. O que é muito parecido com o que Putin tem feito na Rússia."
No sistema eleitoral, alterações no número e no perímetro de distritos resultaram em uma distorção que permite o controle do Parlamento, com 199 cadeiras, mesmo a uma coalizão que obtenha percentual menor do total de votos. Mais recentemente, o governo mudou outra lei para permitir que um eleitor se registre em qualquer endereço com acesso a correio, o que poderia abrir brechas a votações duplicadas.
E, para a próxima votação, também pode desequilibrar a disputa a realização do referendo sobre questões LGBT no mesmo dia da eleição parlamentar. Uma das perguntas é "você apoia a exposição irrestrita de menores de idade a conteúdo de mídia sexualmente explícito que pode afetar seu desenvolvimento?".
Por isso, a OSCE (Organização para Segurança e Cooperação na Europa), por meio do seu departamento de instituições democráticas e direitos humanos, pediu que a eleição fosse monitorada por ao menos 200 observadores independentes. Em relatório divulgado em fevereiro, listou os riscos da eleição, como "possível intimidação e compra de votos e o impacto da realização do referendo simultâneo".
Se o ambiente já era desfavorável para oposição, a guerra na Ucrânia, afirma a professora, também pode ajudar Orbán. O lugar de líder da UE o habilita a fazer o discurso de que está preparado para atuar em tempos de crise. "Ele está repetindo que defende os interesses dos húngaros e a economia dos cidadãos."
Para o instituto Political Capital, em Budapeste, o conflito pode interferir na campanha eleitoral, mas não a ponto de desequilibrar a disputa entre governo e oposição. "Por enquanto, o partido no poder continua a ser o mais provável a ganhar as eleições. A guerra, até agora, não piorou as chances eleitorais do governo e pode até ter um efeito benéfico para o Fidesz", afirmou em relatório compartilhado no dia 10.
Os analistas avaliam que a "bolha de opinião" criada pelo partido do governo é tão eficiente que as mensagens da oposição não conseguem penetrar. A situação, no entanto, pode mudar a longo prazo.
"As ações extraordinariamente fortes dos Estados democráticos ocidentais podem pôr fim aos sonhos de construção de um império de Putin e também às ideias de Orbán sobre uma nova ordem mundial."
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