Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Morte de idosa na Ucrânia é reflexo do impacto da guerra na vida cotidiana

Mulher deve ter sido atingida por morteiro russo em ataque de retaliação por ação de drones ucranianos perto de Kiev

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Kiev

Uma senhora está morta em Hoholiv, caída ao lado de sua casa. É a casa mais pobre —e a única atingida nesse ataque das tropas russas— entre todas daquele quarteirão da pequena cidade, a 43 km de Kiev.

Está vestida com muitas peças de roupa, pelo menos duas blusas e uma calça de lã. Coberta por uma jaqueta barata, mas grossa, feita com tecido de náilon vermelho e lã sintética.

Idosa morta após ataque russo na pequena cidade de Holoviv - André Liohn

Pouco antes de morrer, ela estava cortando lenha. É o que indicam os muitos galhos finos ao redor do seu corpo encolhido. Um pequeno machado, caído no chão, como que abandonado às pressas, fortalece a possibilidade.

A posição do corpo, de costas para a ferramenta e a lenha, sinaliza que a senhora tentou se mover rapidamente, mas não houve tempo para encontrar um local seguro. É provável que, nos últimos segundos de vida, ela tenha percebido que algo muito errado estivesse prestes a acontecer: uma forte explosão por perto, por exemplo. Morteiros e mísseis são lançados em sequência, nunca de forma unitária. Podem vir em pares, dezenas e até centenas de uma só vez, nunca em unidades.

Não se via sangue. Em volta, muitos furos e rasgos causados por pedaços de ferro ardente: na parede da casa, no muro parcialmente derrubado, em pedaços de lata espalhados pelo quintal e, muito provavelmente, em alguma parte do corpo dela.

É possível que a idosa tenha tentado se levantar, como demonstra o braço direito rígido empurrando o corpo contra a parede.

Certamente ela sentia frio. Não só pelas roupas que usava, mas pela fragilidade da casa (janelas finas e portas velhas). Horas depois de sua morte, o termômetro marcava -1°C, com sensação de -3°C. Talvez vivesse apenas com a companhia de animais. O corpo estava ali havia horas, sem que ninguém se importasse em enterrá-lo ou ao menos removê-lo.

Quando a reportagem esteve em Holoviv, um vizinho passou pela rua, disse que aquilo era uma tragédia, mas não se aproximou do corpo —ao contrário de quatro gatos, todos brancos e pretos, uns mais brancos, outros mais pretos. Os bichos ficavam perto dela e só saíam de lá quando apareciam pessoas estranhas carregando câmeras.

Hoholiv fica às margens da estrada E95, que liga Kiev à Belarus, país de onde partiram companhias de blindados e de artilharia.

Entre o final da tarde de quarta (9) e o início da madrugada desta quinta (10), uma coluna de blindados avançando pela via foi interceptada pelos ucranianos. Mais de 30 tanques russos se viram surpreendidos por ataques aéreos, provavelmente executados com o uso de drones.

Em vídeos compartilhados pelo governo ucraniano, é possível observar soldados russos correndo desesperadamente para seus tanques. Alguns morreram, muitos fugiram numa enorme fila de blindados desaparecendo no horizonte.

Alguns veículos em boa condição foram abandonados pelos russos, como um MT-LB usado para transporte de tropas de infantaria. Com problemas de ignição, foi deixado para trás ao lado de muitos itens de higiene e uso pessoal —bolsas, jaquetas e gorros militares. Horas depois, um mecânico do Exército ucraniano fez o blindado funcionar e o levou para sua tropa, como uma espécie de troféu.

A retaliação russa veio em forma de mísseis e morteiros lançados aleatoriamente. Um deles provavelmente causou a morte da senhora descrita no início deste texto.

O confronto também afetou fortemente outras pessoas, gente que levava a vida normalmente até a invasão russa. Como o agricultor Igor, 32, que há duas semanas passou a integrar uma das milícias de civis armados formadas para lutar contra a ocupação russa.

Durante os combates do dia anterior, ele foi baleado na mão direita, que precisou ser amputada. Igor estava no hospital de Brovari para tratamento.

No mesmo hospital, estava Katia, 14, atingida no braço por um projétil. Vladimir, o cirurgião responsável, disse à Folha que, diferentemente do que aconteceu com Igor, ele espera preservar o braço de Katia.

Quase 2 milhões de pessoas já fugiram da capital ucraniana, disse o prefeito de Kiev, Vitali Klitschko, enquanto as forças russas avançam sobre a cidade, vindas de Brovari e outras localidades da região. "Um em cada dois moradores de Kiev deixou a cidade", disse o político ex-boxeador à TV ucraniana nesta quinta.

As ruas de Kiev estão vazias na maior parte do tempo. Há constantes alertas de sirene, que anunciam a possibilidade de ataques aéreos, e existe um excesso de barricadas, que impedem o acesso de carros e pessoas a muitas áreas da capital.

Lojas, cafés, restaurantes e prédios públicos estão fechados e serviços de transporte, como metrô, interrompidos. Ainda há, porém, muitos homens na cidade, vários dos quais nunca tinham tocado em armas —como o agricultor Igor, que teve a mão amputada. Esses homens estão proibidos de deixar o país e, em breve, deverão enfrentar, queiram ou não, o Exército russo.

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