Jornalista russa que protestou contra guerra na Ucrânia é multada por ato

Editora surgiu com cartaz em transmissão ao vivo; âncora de TV pró-Kremlin deixa o país

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São Paulo

Um dia após causar sensação na Rússia ao aparecer ao vivo no principal telejornal do país com um cartaz protestando contra a guerra na Ucrânia, a jornalista Marina Ovsiannikova já sentou no banco dos réus.

Editora do programa Vremia (Tempo), do estatal Canal Um, Marina gritou pedindo o fim do conflito e levantou um cartaz com frases como "não acreditem na propaganda" e "aqui todos mentem", além do "não à guerra", em inglês e em russo.

Marina interrompe a transmissão do telejornal Tempo com cartaz contra a guerra
Marina interrompe a transmissão do telejornal Tempo com cartaz contra a guerra - Reprodução Canal Um/Reuters

Nessa audiência, ela não foi enquadrada no crime, definido por lei na semana retrasada, de divulgação de informações falsas sobre a "operação militar especial", como o Kremlin chama a guerra, e as Forças Armadas russas.

Por isso, poderia pegar até dez dias de cadeia e pagar uma multa administrativa, não os 15 anos que a interpretação mais draconiana da lei permite. Mas acabou sendo multada em 30 mil rublos (R$ 1.430). Seu advogado disse que ela deve falar à imprensa na quarta (16), quando ficará claro se ela ainda está sujeita a mais punições.

Houve protestos internacionais contra a eventual condenação da jornalista, que recebeu apoio até da Organização das Nações Unidas, e isso pode ter pesado. Mas a rapidez de seu julgamento foi feita para servir de exemplo.

Mais cedo, o porta-voz do Kremlin criticou Marina, dizendo que ela cometeu um ato de vandalismo. Mas elogiou o Canal Um, por sua "cobertura técnica e imparcial". Antes de ser detida, logo após o episódio na noite de segunda (14), a editora havia postado em rede social um manifesto contra a guerra, contra a emissora e contra o presidente Vladimir Putin.

O clima entre jornalistas do país está péssimo. Também nesta terça, a âncora Lilia Gildeeva, que estava havia 16 anos à frente do programa Hoje, do canal de TV aberto NTV, anunciou que fugiu da Rússia.

Ela pediu demissão de um país desconhecido, segundo o jornal RBC. A NTV foi o primeiro canal a sofrer intervenção do governo de Putin, em 2001, quando foi tirado de um oligarca rival do Kremlin e comprado pela estatal de gás Gazprom.

Gildeeva nem de longe parecia uma opositora. Recebeu duas vezes uma comenda de Putin por seu trabalho. Disse que deixou o país por medo de ser impedida de fazê-lo no futuro, embora não tenha elaborado o motivo óbvio, a guerra na Ucrânia.

Os dois episódios dão tons sombrios à situação da mídia russa. Desde o começo da guerra, foram sendo impostas paulatinas proibições e restrições oficiais a veículos que reportassem o conflito chamando-o pelo nome. Veículos clássicos da democratização pós-soviética, como a rádio Eco de Moscou, e símbolos mais modernos da independência possível na Rússia, como a TV Chuva, tiveram de fechar as portas.

Só há um jornal de fato independente, o Novaia Gazeta, dirigido pelo detentor do Nobel da Paz de 2021 Dmitri Muratov. Ele anunciou que não irá cobrir a guerra por estar sob censura militar, mas tem feito reportagens sobre os efeitos indiretos do conflito na sociedade russa. Muratov adota uma linha editorial livre, mas tem bastante trânsito no Kremlin e na elite russa.

Repórteres de canais de TV e jornais alinhados ao Kremlin têm feito queixas constantes sobre as novas condições, com o temor de serem enquadrados na dura lei da guerra. Veículos estrangeiros suspenderam sua operação no país, mas alguns, como a BBC britânica, voltaram a operar.

Sobram relatos de jornalistas, cientistas políticos e analistas militares deixando o país rumo a nações próximas, como Letônia e Geórgia, para esperar uma clareza maior do que irá acontecer com a Rússia —o risco de um endurecimento do regime é visto como real, em especial se Putin obtiver uma vitória militar.

Um sinal algo inquietante surgiu nesta terça (15), com os canais de Telegram da Omon, a temida polícia de choque russa, abrindo "oportunidades de emprego em toda a Moscou". Os salários vão do equivalente a R$ 2.600 a R$ 4.700, não exatamente brilhantes para o alto padrão de vida da capital russa.

Todos os dias, redes sociais são inundadas por vídeos de pessoas insinuando fazer protesto ou conceder entrevistas perto da praça Vermelha, coração de Moscou, e sendo presas por gente da polícia ou da Omon. Segundo a ONG de monitoramento de violência estatal OVD-Info, desde o começo da guerra cerca de 15 mil manifestantes foram detidos —salvo exceções, soltos após registro em delegacia.

Ainda assim, ativistas ligados a Alexei Navalni seguem incentivando protestos. O líder opositor, que foi preso no ano passado, enfrenta no dia 22 um novo julgamento, no qual poderá pegar 13 anos de cadeia por acusações que diz ser falsas de desvio de dinheiro.

"Nós tínhamos um país até a quarta-feira, 23 de fevereiro. Fomos dormir e acordamos em outro", disse Mikhail, um cientista político que se refugiou em Riga, a capital letã, e pede para não ter o sobrenome divulgado. "Agora é esperar. Eu era jovem quando a União Soviética acabou, em 1991, e achava que nunca veria algo parecido de novo, em termos de impacto no país." Ele tem 49 anos.

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