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Na Guatemala, o 'metal do diabo' devasta ambientes locais

Solway omitiu relatórios sobre danos ambientais ao Lago Izabal, na comunidade de El Estor

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Lea Peruchón
Forbidden Stories

A reportagem abaixo faz parte da série "Mining Secrets", uma investigação colaborativa coordenada pelo consórcio Forbidden Stories junto com 65 jornalistas de 20 organizações em 15 países.

Na Guatemala, aqueles que ousam criticar os impactos ambientais devastadores de uma mina de níquel construída em terras ancestrais, como fez o jornalista Carlos Choc, têm sido silenciados.

Os donos da mina conseguiram esconder durante anos a prova dos danos que a mina provocou ao ambiente em torno dela, mas hoje o consórcio Forbidden Stories e seus parceiros estão erguendo o véu que recobre o Grupo Solway, proprietário da mina, e trazendo à tona seus segredos mais bem escondidos.

Esta reportagem faz parte do projeto "Mining Secrets", publicado três anos após o projeto "Green Blood", que visa a levar adiante o trabalho de jornalistas atacados por investigar escândalos ambientais.

Área de exploração da mina Fénix, em El Estor, na Guatemala
Área de exploração da mina Fénix, em El Estor, na Guatemala - Forbidden Stories

À primeira vista parece haver pouco em comum entre uma máquina de lavar da Siemens, uma pia da Ikea e o arranha-céu Burg Khalifa, em Dubai. Mas existe uma semelhança crucial: os três foram feitos com aço inoxidável ultrarresistente vendido pela poderosa siderúrgica multinacional finlandesa Outokumpu.

A Outokumpu se apresenta em seus materiais promocionais como uma empresa moderna, arrojada e ambientalmente consciente. "Não é apenas o que produzimos, mas como produzimos", diz um relatório de sustentabilidade produzido pela companhia. Mas a cadeia de fornecimento da empresa, investigada pelo Forbidden Stories e 20 parceiras de mídia ao longo de seis meses, revela uma história diferente.

Apesar de afirmar que assume a responsabilidade de "assegurar que nossos fornecedores utilizem processos e ações efetivos para proteger o ambiente e os direitos humanos", a Outokumpu importa algumas de suas matérias-primas –em especial o ferroníquel— de uma mina gigante situada nas montanhas do sudeste da Guatemala. Nessa região isolada, comunidades indígenas há anos protestam contra a destruição e a erosão constante de suas terras pela mina Fénix, pertencente ao Grupo Solway.

Dirigido por empresários russos e estonianos e sediado na Suíça, o Grupo Solway opera a mina por meio de duas subsidiárias locais: a Companhia Guatemalteca de Níquel (CGN) e a Pronico. A gestão da Solway não tem sido isenta de controvérsias, e a extração do níquel –que ganhou o apelido de "metal do diabo" devido à dificuldade de seu refino— não tem sido isenta de consequências para a população local.

A Solway, que todos na área local chamam simplesmente de "a empresa", sempre negou seu impacto ambiental, independentemente de se tratar de desmatamento, erosão do solo ou poluição da água e do ar.

Em carta enviada ao consórcio Forbidden Stories, a Solway foi categórica: "O Solway Investment Group opera inteiramente de acordo com as leis nacionais e os regulamentos internacionais aplicáveis", escreveu seu CEO, Dan Bronstein. "Refutamos quaisquer alegações destituídas de base factual."

Mas, pela primeira vez, o Forbidden Stores e seus parceiros puderam olhar atrás das cortinas do conglomerado de mineração, graças a um enorme vazamento de dados compartilhado com 65 jornalistas de 20 organizações internacionais de mídia, incluindo Le Monde, The Guardian e The Intercept.

O consórcio de jornalistas coordenado por Forbidden Stories passou seis meses estudando mais de 8 milhões de arquivos internos e 470 caixas de correio pertencentes a representantes da mina Fénix. Hoje eles estão expondo os esforços da companhia –em conjunto com autoridades locais e nacionais— para ocultar informações, mentir às populações locais e perfilar e assediar aqueles que ousaram investigar a mina, com o objetivo de ocultar um fato inconveniente: a prova de um escândalo ambiental arrasador.

A misteriosa mancha vermelha

Nas margens do Lago Izabal, o maior lago da Guatemala, crianças pescam com vara e admiram os caminhos dos barcos que voltam à costa carregados de peixes para serem grelhados nos restaurantes locais. A vida das comunidades indígenas maias Q’eqchi’ que vivem na região foi durante muitos anos calma e em equilíbrio completo com a natureza. Mas isso tudo mudou em 2017.

Numa manhã de abril, quando preparavam as iscas para pescar bagres, os pescadores locais observaram algo incomum: uma mancha oleosa vermelha na superfície da água do lago. Para os pescadores, a origem dessa cor vermelha não poderia ser mais evidente: só podia estar vindo diretamente da mina vizinha.

"Desde 2016 a gente tem visto peixes-boi, peixes, lagartos e tartarugas morrendo", disse Cristobal Pop, presidente da associação local de pescadores, "mas até o lago mudar de cor ninguém prestou atenção."

Cristobal Pop, presidente da associação local de pescadores de El Estor, na Guatemala
Cristobal Pop, presidente da associação local de pescadores de El Estor, na Guatemala - Forbidden Stories

Quando os pescadores saíram às ruas para reivindicar que as autoridades investigassem a mancha vermelha, a polícia reprimiu os protestos com violência. Em 27 de maio de 2017, o pescador Carlos Maaz, de 27 anos, foi morto, pondo fim repentino às manifestações. As autoridades acabaram investigando a mancha vermelha, mas suas conclusões diferiram fortemente das dos pescadores. Segundo Maritza Aguirre, diretora da agência governamental responsável por monitorar o lago, a cor misteriosa não emanava da mina, mas de uma planta aquática invasiva chamada Botryococcus braunii.

Procurado, o Ministério do Meio Ambiente e Recursos Naturais guatemalteco (MARN) reiterou esse argumento –que a empresa também tem usado quando é questionada sobre a mancha vermelha.

"O aumento de nitrogênio promove o crescimento de algas", disse o diretor do departamento ambiental da mina, Gustavo Garda. "Foi isso que conferiu essa cor ao lago, e os pontos onde [essa mancha] foi identificada especificamente são distantes de nossas zonas de exploração."

Para ele, o fato de a cor da mancha ser semelhante à do material produzido na mina é "pura coincidência".
Contudo, documentos internos contradizem as declarações públicas da empresa. Embora algas invasivas tenham de fato sido observadas durante o período em questão, a mancha vermelha era tudo menos natural. Uma análise de e-mails contidos no vazamento mostra que, internamente, representantes da mina se preocuparam com a possibilidade de sedimentos das zonas de exploração terem provocado a mancha.

"A presença de sedimentos no canal de saída da fábrica não pode ser ignorada", informou relatório de março de 2017 compartilhado por e-mail com a direção da mina. "Foi observado após chuvas pesadas que o material estava chegando ao Lago Izabal."

Esse relatório interno, traduzido para o russo e compartilhado com a direção da empresa, mostra que sedimentos de limonita –um minério rico em ferro idêntico ao níquel extraído das encostas das zonas de exploração da mina— foram pelo menos parcialmente responsáveis pela mancha vermelha. "A descarga de sedimentos no lago foi evidenciada pela cor avermelhada da água nesse local", diz o relatório.

Pescadores no Lago Izabal, na Guatemala, atingido por sedimentos das zonas de exploração de uma mina de níquel
Pescadores no Lago Izabal, na Guatemala, atingido por sedimentos das zonas de exploração de uma mina de níquel - Benjamin Thuau/Radio France

"Estou preocupado com o que está ocorrendo, especialmente porque pode levar a uma vistoria do MARN", escreveu Marco Aceituno, um dos diretores da mina na época. Outro funcionário respondeu com planos específicos para "impedir a contaminação vinda da zona 212", por exemplo com o uso de barreiras de tábuas de madeira para reter os sedimentos.

A empresa entrou em ação prontamente. Os e-mails mostram que, no dia seguinte à redação do relatório de 11 de março, as subsidiárias da Solway apresentaram boletins de ocorrência, enviaram equipes para fotografar o canal de saída e organizaram reuniões para discutir a crise.

Marvin Méndez, diretor administrativo da Pronico, uma das subsidiárias da Solway, confirmou a existência desse relatório –que nunca foi levado a público— em carta enviada em fevereiro de 2022 a um membro do Forbidden Stores. Segundo ele, porém, "a água no canal não é responsabilidade da CGN e da Pronico, porque vem de zonas naturais" não exploradas pela mina. A empresa acrescentou que a água de chuvas que cai em suas zonas de exploração é redirecionada a uma barragem, não em direção ao canal de saída.

Não está claro se as propostas da mina para conter o vazamento acabaram sendo adotadas, mas, segundo relatório interno, é certo que, após o incidente inicial, representantes da empresa foram informados quando outra mancha vermelha apareceu, em abril de 2018. Mas até então a comunidade local já fora efetivamente silenciada. "Infelizmente, os movimentos de protesto daquela época foram sufocados", disse Rafael Maldonado, advogado da associação de pescadores, entrevistado por membros do consórcio Forbidden Stories. "A comunidade está muito assustada."

Jornalistas sob vigilância

A morte do pescador Carlos Maaz, em 2017, foi um momento de virada para muitos moradores de El Estor. Hoje, porém, só resta uma foto como evidência documental do que aconteceu. A foto foi feita pelo jornalista Carlos Choc para a Prensa Comunitária como parte de uma investigação detalhada da "resistência histórica do povo Q'eqchi'". Ao longo de meses, Choc entrevistou pescadores locais, colheu mostras de água do Lago Izabal e documentou os danos ambientais provocados pela mineradora na região, onde as colinas ondulantes são ricas em níquel. A investigação nunca chegou a ser publicada.

Sob o pretexto de que ele teria participado do protesto, Choc, ao lado de um colega jornalista e cinco pescadores, foi acusado pelo Grupo Solway de seis crimes e infrações. Em agosto de 2017 foi emitido um mandado de prisão contra ele, que o obrigou a passar vários meses escondido. "Tive que abandonar meus filhos, minha família, minha comunidade", disse Choc em entrevista à Forbidden Stories.

Os meses de exílio não foram considerados punição suficiente para o jornalista local. Quando reapareceu, meses mais tarde, a empresa o colocou sob vigilância, como mostram documentos do vazamento de dados. Mergulhando nos arquivos da Solway, o Forbidden Stories e seus parceiros descobriram um arquivo revelador. A pasta interna, rotulada como "fotos-chave", incluía dezenas de imagens de Choc: na floresta durante uma viagem de reportagem em março de 2019, dirigindo sua picape vermelha perto de El Estor, andando com o advogado Rafael Maldonado para sua audiência judicial na vizinha Puerto Barrios.

O pescador Carlos Maaz, morto durante protesto em maio de 2017 em El Estor, na Guatemala
O pescador Carlos Maaz, morto durante protesto em maio de 2017 em El Estor, na Guatemala - Carlos Choc

"É muito preocupante saber que fui fotografado", disse Choc depois de ver as imagens. "Estou muito indignado, porque a mineradora controla não apenas a população de El Estor, mas também a vida de defensores ambientais e minha vida de jornalista."

Questionado sobre esses métodos, Méndez escreveu em carta na qual afirma que "essa informação não corresponde à realidade". Mas documentos que integram o vazamento sugerem que Choc não foi a única pessoa que a empresa colocou sob vigilância intensiva. Jornalistas que fizeram reportagens em El Estor em 2019 como parte do projeto "Green Blood" foram fotografados sem seu conhecimento. Fato que talvez seja ainda mais preocupante é que um dos cinegrafistas e o motorista da equipe foram seguidos por um drone da companhia. O objetivo dessa vigilância, segundo relatório escrito para a equipe de segurança da empresa, foi "acompanhar os movimentos desses indivíduos e suas intenções".

Para os jornalistas internacionais que viajaram a El Estor, nada foi deixado ao acaso. A visita dos jornalistas à mina foi fortemente controlada e organizada, segundo e-mails internos aos quais o Forbidden Stories teve acesso. "Mostrem [aos jornalistas] uma fábrica limpa, acesso a atendimento médico [para os trabalhadores], funcionários e habitantes guatemaltecos satisfeitos", diz o e-mail enviado pela diretora de comunicações Arina Birstein. "Será mais difícil para eles nos retrataram como capitalistas cínicos que lucram em cima da economia subdesenvolvida e da população local da Guatemala."

Apesar do discurso, após a publicação do projeto "Green Blood" o Grupo Solway processou o Monde e o Forbidden Stories por difamação. As ações ainda estão sendo julgadas. Mas a nova publicação, além das informações que a empresa sempre se recusou a divulgar, confirmam os piores medos da comunidade local sobre o dano ambiental causado pela mina e reafirmam as conclusões iniciais de "Green Blood".

A prova está nos dados sobre a poluição

Em janeiro de 2022, jornalistas do consórcio Forbidden Stories retornaram à mina Fénix. Durante a visita, que durou horas, representantes da empresa foram categóricos quanto ao impacto ambiental da mina: "Não soltamos nada no lago nem em lugar algum. Controlamos e tratamos tudo", disse um representante.

Mas centenas de relatórios, estudos e dados sobre a qualidade da água e do ar, organizados metodicamente no sistema de arquivos internos da empresa, mais uma vez contradizem as declarações que a Solway dá para o público. Em um e-mail de 26 de junho de 2019 ao CEO da Solway, Dan Bronstein, o presidente de uma das subsidiárias da empresa, Dmitri Kudriakov, resumiu suas preocupações com a divulgação de dados ambientais. Escreveu: "Se hoje os jornalistas não têm como nos acusar de poluir, depois de falar com especialistas independentes eles terão essa oportunidade".

Com os dados em mãos, o Forbidden Stories e seus parceiros contataram numerosos especialistas independentes, e a resposta coletiva deles foi clara: é inegável que dejetos minerais não tratados estão chegando aos rios próximos e ao Lago Izabal. Altos níveis de ferro, níquel, manganês e alumínio foram detectados no lago, especialmente nas áreas mais próximas ao canal de saída da mina, como os relatórios mostram claramente. Uma estatística é especialmente reveladora: no centro do lago de 48 quilômetros quadrados a concentração de níquel é de 1,8 micrograma por litro, enquanto nas áreas diretamente adjacentes à mina esse número sobe para 35,3 microgramas —cerca de 20 vezes mais alto.

Em carta compartilhada com o consórcio, Méndez escreveu: "Os resultados relativos a concentrações de metais na água da superfície mostram que as concentrações mais altas estão no rio Polochic [distante da mina], que não é afetado pela operação". Traços de cromo também são encontrados em sedimentos no fundo do lago e dos rios próximos, mostram os documentos vazados.

Segundo Laurence Maurice, diretora de geoquímica ambiental na Universidade Paul Sabatier, em Toulouse, na França "o nível no qual começamos a ver riscos à saúde nos ecossistemas aquáticos é de 90 microgramas de cromo por grama de sedimentos, e aqui no rio vimos que os níveis de cromo são de entre 580 e 2.800 microgramas". "Isso é altíssimo", concluiu ela.

Mas o cromo é encontrado naturalmente no saprólito, uma rocha rica em níquel que é extraída das encostas de El Estor. O saprólito é decantado na instalação de processamento de metal da Pronico, onde o níquel é então isolado. Como parte desse processo, os resíduos de cromo das rochas armazenadas em pedreiras ou centros de armazenagem de minerais a céu aberto podem acabar chegando aos cursos d’água e ao lago, situado a apenas algumas dezenas de metros da estação de tratamento.

"O que deve ser feito em um caso como esse é que as autoridades devem ser alertadas —simplesmente um ‘ei, fiquem de olho’", disse o professor de ciências da terra Thierry Adatte, da Universidade de Lausanne, na Suíça, depois de os dados sobre resíduos de cromo lhe terem sido mostrados. "É um problema real, que não deve ser ignorado."

Davide Vignati, diretor pesquisador do Laboratório Ambiental Continental Interdisciplinar em Metz, na França, disse que, para confirmar os riscos aos ecossistemas de fauna locais, as autoridades precisariam fazer testes de toxicidade, que medem como diferentes organismos reagem à exposição a esses metais, e testes de biodisponibilidade, outra maneira de medir a exposição a metais.

O mais importante, possivelmente, acrescentou ele, é que as autoridades teriam que analisar os níveis de cromo presentes nos peixes, já que uma exposição alta nesses animais pode indicar contaminação subindo pela cadeia alimentar e chegando aos humanos.

Segredos da mineração e doenças causadas pela mina

Mas para os moradores de El Estor, sem acesso a amostras ou estudos das autoridades, o único ponto de referência têm sido seus próprios corpos. Dados empíricos já lhes davam motivos para se preocuparem, segundo o pescador Cristobal Pop. "Todo mundo que entrava no lago começou a sentir coceira", disse ele, que se preocupa com os quatro filhos. "Uma pessoa alérgica poderia facilmente ficar com urticária."

Entretanto, a água não é o único recurso afetado pelas atividades da mina. Segundo documentos encontrados no vazamento, partículas finas que são potencialmente nocivas à população local também foram detectadas na fumaça liberada pela estação de tratamento e também na poeira levantada pela passagem diária de caminhões transportando minerais para exportação.

Respondendo a perguntas específicas enviadas pelo consórcio, a empresa negou ser a causa de qualquer poluição do ar e anexou como prova disso análises atmosféricas do segundo semestre de 2020.

Não é a mesma conclusão à qual chegou Gaelle Uzo, geoquímica atmosférica do Instituto de Ciências da Terra e do Ambiente, em Grenoble, na França, quando analisou a pedido do consórcio Forbidden Stores documentos confidenciais em Excel que faziam parte do material vazado. Essas mostras, que mediram vários indicadores de qualidade do ar em El Estor ao longo dos últimos seis anos, com medições feitas em diversos pontos na mina e nas cercanias, contam uma história diferente, segundo ela. De acordo com sua análise, a poluição por partículas frequentemente excede as recomendações da OMS.

"Em certas estações a poluição atmosférica é duas a três vezes superior aos níveis admissíveis", disse Uzu, fazendo referência a padrões europeus de poluição atmosférica, porque a Guatemala não possui legislação própria sobre qualidade do ar. "Na Europa, consideramos que esse nível de exposição é inaceitável e pode levar a doenças cardiorrespiratórias de longo prazo."

Segundo dados internos da própria empresa analisadas por Uzu, esses números regularmente excedem o limite máximo definido pela União Europeia, de 20 nanogramas por metro cúbico de ar. Em El Estor, a quantidade de metal em pontos dentro da mina e perto dela varia entre 150 e 800 nanogramas —40 vezes o limite máximo aceito na Europa. "Tais níveis de poluição do ar podem expor indivíduos a um risco alto de intoxicação aguda", disse Uzu. "Quando uma pessoa é exposta a ele por um período prolongado, ao longo de vários anos, o níquel pode ser carcinogênico."

A cortina de fumaça da Solway

Em Las Nubes, pequena comunidade situada a poucas centenas de metros da estação de tratamento de níquel da mina, dores de cabeças e febras são comuns. "Achamos que é em razão da fumaça que vem da fábrica", disse Luis Caal, que vive em Las Nubes, a um membro do consórcio Forbidden Stories.

Embora muitos em Las Nubes tenham feito queixas semelhantes, não foi divulgado publicamente nenhum estudo científico encomendado pela Solway sobre os efeitos da mina sobre a saúde da população local.

Questionado, Méndez, diretor administrativo da Pronico, disse que não é papel da empresa compilar estatísticas. "Estatísticas sobre a saúde da comunidade são administradas pelo Ministério da Saúde. Não temos influência sobre instituições no que diz respeito a estudos e/ou divulgação de estatísticas."

Contudo, os documentos internos sugerem que executivos da empresa se deram a grande trabalho para assegurar que estudos sobre saúdes potencialmente incriminadores nunca saíssem dos limites dos servidores internos da mina. Em uma discussão com o assessor de imprensa da empresa pouco após a publicação do projeto "Green Blood", Dmitri Kudrakov, diretor da subsidiária local que opera a mina, rejeitou a ideia de criar um banco de dados aberto sobre os impactos ambientais e de saúde da mina.

"Isso provocaria um enxurrada enorme de queixas", escreveu ele. "Os autores das queixas atribuíram suas doenças à empresa, na esperança de conseguirem dinheiro com isso. Todos esses dados seriam documentados pelo Caimi [o centro de saúde pré-natal local] e disponibilizados a jornalistas."

O Forbidden Stories procurou agentes de saúde locais, mas muito poucos concordaram em falar sobre o assunto "on the record" devido à influência que a Solway exerce sobre vários centros de saúde na região.

Mas o diretor do Caimi concordou em ser entrevistado por um membro do consórcio. Paulo Mejia –cujo aparelho de ar-condicionado em sua sala traz um adesivo da "Pronico", da estação de tratamento local—trabalha na Caimi há 12 anos, incluindo dois anos como diretor. Ele disse que a clínica trata pacientes por uma série de doenças, incluindo problemas diarreicas e respiratórios. Mas, quando questionado se pode haver alguma ligação entre essas doenças e a mina vizinha, ele foi mais reticente. "Não tenho uma base científica ou administrativa para dar uma opinião sobre a pergunta que você está me fazendo", disse.

"É óbvio que o médico jamais comprometeria a mina", disse Maldonado, advogado da associação de pescadores. "É a Solway que subsidia o centro de saúde." Em resposta por escrito, representantes da empresa disseram que sempre respondem ao Caimi quando recebem pedidos e que "esse é o único centro de saúde especializado num raio de mais de 100 km, de modo que a empresa lhe dá atenção prioritária".

Aludindo à frequência de doenças incluindo diarreia, anemia e doenças respiratórias, uma funcionária do centro de saúde que preferiu ficar anônima foi um pouco mais longe em sua análise. "Imagino que sejam causadas pelo pó", disse. "É claro que estamos investigando essas questões de saúde, mas já que o Estado é a favor da indústria mineradora, é melhor ficarmos calados, certo?"

'Muralha de impunidade'

Ao longo de várias entrevistas como parte do projeto "Mining Secrets", indígenas guatemaltecos e alguns antigos líderes de El Estor expressaram frustração com o que consideraram ser falta de responsabilização de atores chaves na região, incluindo o estado guatemalteco. "Há uma muralha de impunidade", disse Maldonado, "porque as comunidades nunca conseguem justiça."

A frustração deles remonta a pelo menos 2005, quando a mina Fénix, que hoje produz 36,2 milhões de toneladas de níquel por ano para exportação, obteve autorização de extração. Na época, a mina não pertencia à Solway, mas mesmo então as autoridades se preocupavam com seus potenciais impactos ambientais. Um grupo foi criado para realizar um estudo de impacto ambiental, mas foi desfeito mais tarde em favor de outro comitê mais leniente, que deu à mina sinal verde para iniciar operações.

Questionado sobre o estudo original de impacto ambiental, o Departamento do Ambiente atual disse que não sabe "se os consultores que avaliaram o estudo de impacto ambiental na época expressaram sua oposição". De acordo com um antigo funcionário do Ministério do Ambiente que preferiu ficar anônimo por temer represálias, os proprietários da mina na época "não forneceram suficientes informações claras sobre como planejavam reduzir o impacto da mina sobre a rica biodiversidade da região".

Quinze anos mais tarde, e apesar de os donos da mina hoje serem outros, parece que o "modus operandi" não mudou. Em julho de 2019 o Tribunal Constitucional guatemalteco sustou as operações da mina quando descobriu que a Solway estava operando ilegalmente numa área de 247 quilômetros quadrados, em lugar dos 6,29 quilômetros quadrados autorizados pelo estudo original de impacto ambiental.

O tribunal também constatou que as comunidades indígenas na "zona de influência" da mina não haviam sido adequadamente consultadas sobre o projeto e ordenou ao Ministério de Energia e Minas a suspensão da licença de exploração da mina até que fosse concluído um processo de consulta com a comunidade. Procurado, o Ministério de Energia e Minas não respondeu a múltiplos pedidos de comentário.

A suspensão só entrou em vigor em fevereiro de 2021, mais de um ano e meio após a decisão inicial do tribunal. Mas, segundo algumas fontes, a mina nunca parou de explorar a terra. "A empresa nunca cumpriu a resolução do mais alto tribunal do país e continuou a operar com impunidade", disse Maldonado.

De acordo com a antropóloga Guadalupe Garda Prado, diretora do Observatório de Indústrias Extrativas (OIE), a mina continuou a operar entre pelo menos fevereiro e novembro de 2021, apesar de a empresa alegar que respeitou a suspensão. Prado compartilhou imagens exclusivas da Planet Labs, uma plataforma de imagens por satélite, que mostram claramente uma mancha vermelha aparecendo na paisagem entre as extensões de floresta verde e os telhados de zinco das casas da comunidade.

As subsidiárias da Solway negaram essas alegações, escrevendo: "Assim que foi informada da suspensão da autorização de mineração, o trabalho de mineração foi suspenso imediatamente."

Questionado sobre as imagens de satélite, Méndez afirmou que "apenas a vegetação foi removida, não a camada de solo orgânico", dizendo que isso foi parte de um esforço para "controlar a erosão do solo".

Para os indígenas guatemaltecos, as esperanças de uma suspensão de longo prazo da mina se evaporaram rapidamente com o desaparecimento da juíza que ordenara inicialmente a suspensão das operações extrativas da mina. Em abril de 2021, quando seu mandato não foi renovado pelo Congresso, a juíza do Tribunal Constitucional que decretara a suspensão da mina fugiu do país.

Conhecida pelas posições a favor de povos indígenas e da luta contra a corrupção, Gloria Porras perdeu sua imunidade e decidiu deixar o país para evitar possível perseguição. Desde então desapareceu do radar, e o Forbidden Stories e seus parceiros não conseguiram entrar em contato com ela, apesar de diversas tentativas. "O Tribunal Constitucional era uma das poucas instâncias restantes que permitiam à população defender seus direitos", disse Garcia Prado. "E agora [sua juíza] desapareceu. Não há mais nenhum poder político a favor das comunidades."

A história se repete na Guatemala

Em El Estor, a luta das comunidades locais contra a mina levou a algumas vitórias pequenas. Em janeiro de 2022 o conglomerado siderúrgico finlandês Outokumpu disse ao consórcio Forbidden Stories que "suspendeu todos os pedidos novos [da Solway] desde novembro de 2021", o mês seguinte a protestos em massa em El Estor contra a mina e à imposição de estado de sítio pelo governo.

A Outokumpu disse que a decisão foi tomada também depois de ela ter sido procurada pela televisão estatal sueca SVT, um dos membros deste consórcio, com informações sobre danos ambientais graves.

"As alegações contra as operações de mineração na Guatemala são muito sérias, e não tínhamos conhecimento delas até agora", escreveu um representante da Outokumpu. "Estamos agindo de modo firme e decisivo com base nas novas informações e abrimos nossa própria investigação sobre as alegações, realizada em conjunto com uma parceira externa para avaliações de sustentabilidade."

Mesmo assim, muitas empresas internacionais continuam a comprar o "metal do diabo" da Guatemala sem pensar duas vezes sobre a forma como é extraído. No local, comunidades indígenas, organizações de pesquisadores e jornalistas locais continuam a denunciar o impacto ambiental da mina Fénix, apesar das novas tentativas desta de silenciá-los. Depois de Carlos Choc retornar a El Estor para cobrir os protestos em outubro de 2021, sua casa foi vasculhada por forças de segurança locais. O jornalista, que ainda enfrenta uma ação judicial movida pelas subsidiárias da Solway, foi obrigado a se mudar para outro local distante várias centenas de quilômetros de El Estor.

Ele retorna mensalmente a El Estor para se apresentar à polícia, conforme exigência do tribunal que, se não for cumprida, pode resultar em prisão. Já a mina recebeu carta branca em 6 de janeiro de 2022 —uma resolução do MEM que a autorizou oficialmente a retomar suas operações extrativas.

Como se nada tivesse acontecido.

Acobertamento letal

Em agosto de 2016, uma das caldeiras da estação de processamento de níquel explodiu, matando cinco funcionários. Na época, as vidas perdidas e as tentativas da mina de acobertar o incidente provocaram um escândalo em El Estor. Mas, segundo dados vazados, o acidente pode também ter tido impactos ambientais graves que nunca chegaram a vir à tona.

Em e-mail interno a Dmitri Kudriakov, o diretor de gestão ambiental explicou que "combustível do bunker, óleo e água do processo vazaram para o Lago Izabal". "A empresa limpou tudo", afirmou. "O ministério não tem vestígios de quais derrames." Cinco anos mais tarde, a empresa nunca foi cobrada por essa explosão.

Em declaração compartilhada com o Forbidden Stories e suas parceiras, as subsidiárias guatemaltecas da Solway explicaram que, depois do derrame, o Ministério do Ambiente visitou as instalações da mina e não constatou nenhum impacto ambiental.

Tradução de Clara Allain

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