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Polêmica gastronômica na eleição da França expõe falsa polarização e crise de identidade no país

Vinho, queijo e carne se tornam símbolo de direita nacionalista enquanto perdem status de tradicionais

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São Paulo

Uma frase dita pelo candidato comunista à Presidência da França, Fabien Roussel, despertou a ira dos eleitores, que correram para tachá-lo de nacionalista e direitista. A polêmica girou em torno da fala "um bom vinho, uma boa carne, um bom queijo: isso é a gastronomia francesa", dita ainda no início de janeiro em um programa de TV e publicada em seu perfil no Twitter, o que gerou diversas reações de indignação.

"Faça avançar a esquerda em vez de fazer convites discretos à direita identitária", respondeu um usuário. Outro sugeriu que o Partido Comunista, do qual o político faz parte, virasse o Partido Conservador.

Pôster do candidato comunista às eleições presidenciais da França, Fabien Roussel, em Paris
Pôster do candidato comunista às eleições presidenciais da França, Fabien Roussel, em Paris - Joel Saget - 18.mar.22/AFP

"Roussel, hoje, é acusado por uma parte da esquerda de ter, sob certos aspectos, um discurso que recupera aquele da direita", diz o cientista político Tristan Haute, professor na Universidade de Lille. "E que contribui para evidenciar a dissensão da esquerda sobre questões relativas ao consumo em geral."

Em um primeiro olhar, a polêmica pode parecer uma edição francesa do "coxinha x mortadela" que marcou a polarização entre tucanos e petistas na eleição presidencial de 2014 no Brasil. Seriam a carne, o vinho e o queijo, tão marcantes no imaginário do brasileiro como símbolos da França —talvez não a carne—, os itens da dieta de direitistas e conservadores? O que estaria, então, na mesa dos esquerdistas e progressistas?

Na realidade, essa disputa ideológica se limita a uma briga entre eleitores e não reflete uma polarização entre os políticos. Nesta campanha presidencial, a esquerda se encontra fragmentada, e a concorrência maior está concentrada principalmente no campo da direita e da ultradireita.

Haute descreve o cenário político francês como muito fatiado, mas sem uma polarização. "A França foi o arquétipo da divisão esquerda-direita, mas hoje não é mais." Por outro lado, explica ele, essa divisão continua quando os eleitores são incitados a posicionar os candidatos. Ainda que eles não se considerem de esquerda nem de direita, conseguem distribuir facilmente os presidenciáveis nesses campos.

E ainda que não haja uma polarização na prática, esse engajamento da população também faz parte de uma estratégia para mobilizar os eleitores, tendo em vista que a sombra da abstenção sobrevoa o pleito, cujo primeiro turno ocorre no dia 10 de abril. Roussel, porém, não é o único a fazer uso dessa tática. "Para Marine Le Pen [da ultradireita] e, do outro lado, Jean-Luc Mélenchon [esquerda], há o desafio de mobilizar esses eleitores que são mais da classe trabalhadora e também são muito jovens", avalia Haute.

Juventude que não está muito disposta a votar, mas não abre mão de discussões na internet. Neste ponto, a discussão motivada pela fala do comunista tem outra camada: o que é, afinal, a identidade francesa?

Segundo levantamento de janeiro do Ifop (Instituto Francês de Opinião Pública), para apenas 8% dos entrevistados pão, queijo e vinho são símbolos franceses –os primeiros lugares vão para o idioma (21%) e para a tríade liberdade, igualdade e fraternidade (20%). Ainda assim, 66% afirmam acreditar que a identidade do país, seja ela qual for, está desaparecendo. Para Pascal Perrineau, analista político e professor na Universidade Sciences Po em Paris, essa crise de identidade tem como pano de fundo a migração, que acabou também colaborando para um fortalecimento da direita no país.

"A questão da migração ligada ao islamismo se tornou algo extremamente importante para muitos franceses. Impõe questões de identidade nacional, e nesse sentido as forças da direita se posicionam melhor", afirma o acadêmico. "A esquerda se incomoda por essa questão migratória, de identidade."

Assim, o que era para ser uma defesa de Roussel do acesso aos produtos, e provavelmente da tradição francesa, acabou se tornando alvo de ovadas virtuais. "E se não bebemos? E se somos vegetarianos? Veganos? A gastronomia francesa não se limita a isso. O que é preciso defender é o acesso à alimentação mais saudável possível", defendeu um usuário. "E quando você não gosta nem do vinho, nem da carne, nem do queijo… Você entrega sua carteira de identidade?", questionou outra usuária.

Aos vegetarianos houve quem ainda respondesse com a frase atribuída –provavelmente de forma equivocada– a Maria Antonieta, quando o pão estava a preços exorbitantes num país que fervilhava às vésperas da Revolução Francesa. "Que comam quinoa." O grão, claro, substitui o brioche da célebre frase.

A guilhotina para Roussel, porém, será figurativa. Com uma esquerda em crise, o candidato tem só 4,5% dos votos nas pesquisas, sem chances de avançar para o segundo turno e derrotar Emmanuel Macron.

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