Putin comete erro histórico, escreveu Madeleine Albright, morta nesta quarta

Em vez de abrir o caminho da Rússia à grandeza, invadir a Ucrânia garantirá a infâmia de Putin

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Madeleine Albright

Diplomata, foi secretária de Estado dos EUA entre 1997 e 2001 e escreveu, entre outros, “Fascism: A Warning” e “Hell and Other Destinations”. Morreu em 23 de março de 2022.

The New York Times

Madeleine Albright, primeira mulher a atuar como secretária de Estado dos EUA, entre 1997 e 2001, morreu nesta quarta-feira (23) aos 84 anos. O artigo a seguir foi publicado em 23 de fevereiro, um dia antes do início da guerra na Ucrânia, no jornal americano The New York Times.

No início do ano 2000 eu me tornei a primeira alta funcionária dos Estados Unidos a ter um encontro com Vladimir Putin em seu novo cargo como presidente interino da Rússia. Nós na administração Clinton não sabíamos muito sobre ele na época –sabíamos apenas que ele iniciara sua carreira na KGB. Eu esperava que o encontro me ajudasse a formar uma ideia sobre o homem e avaliar o que sua ascensão repentina poderia significar para as relações EUA-Rússia, que haviam se deteriorado com a guerra na Tchetchênia. Sentada diante dele no Kremlin, com uma mesinha entre nós, chamou minha atenção imediatamente o contraste entre Putin e seu bombástico predecessor, Boris Ieltsin.

Presidente russo, Vladimir Putin, em encontro com governadores no começo do mês - Mikhail Klimentyev - 10.mar.2022/Sputnik/Kremlin

Enquanto Ieltsin lançava mão de persuasão, bravatas e bajulação, Putin falava sem emoção e sem recorrer a anotações sobre sua determinação em ressuscitar a economia russa e sufocar os rebeldes tchetchenos. No avião, voltando para casa, tomei nota de minhas impressões. "Putin é pequeno e pálido", escrevi, "tão frio que é quase reptiliano." Ele alegava compreender por que o Muro de Berlim tivera que cair, mas disse que não esperava que a União Soviética inteira desabasse. "Putin está constrangido com o que aconteceu com seu país e determinado a restaurar sua grandeza."

Nos últimos meses, enquanto Putin vem acumulando tropas na fronteira com a vizinha Ucrânia, tenho me lembrado daquele encontro de quase três horas com ele. Depois de chamar o estado ucraniano de ficção num discurso bizarro transmitido pela TV, ele emitiu um decreto reconhecendo a independência de duas regiões da Ucrânia controladas por separatistas e enviando tropas para as duas.

A declaração revisionista e absurda de Putin de que a Ucrânia foi inteiramente criada pela Rússia e, concretamente, roubada do império russo, condiz inteiramente com sua visão de mundo deturpada. O que para mim foi o mais perturbador é que essa foi sua tentativa de alinhavar um pretexto para uma invasão em grande escala.

Se ele proceder a essa invasão, será um erro histórico.

Nos 20 e poucos anos passados desde que nos conhecemos, Putin traçou seu percurso abandonando o desenvolvimento democrático para seguir o manual de Stalin. Acumulou poder político e econômico para si mesmo, cooptando ou esmagando potenciais concorrentes, e ao mesmo tempo se esforçou para restabelecer uma esfera de domínio russo em partes da antiga União Soviética. Como outros líderes autoritários, ele equaciona seu próprio bem-estar com o da nação e equaciona oposição com traição. Ele tem certeza que os americanos espelham tanto seu cinismo quanto sua sede de poder e que em um mundo onde todos mentem, ele não tem obrigação nenhuma de falar a verdade. Pelo fato de acreditar que os Estados Unidos dominam sua própria região pela força, ele pensa que a Rússia tem o mesmo direito.

Putin procura há anos aprimorar a reputação internacional de seu país, expandir o poderio militar e econômico da Rússia, enfraquecer a Otan e dividir a Europa (e ao mesmo tempo criar uma divisão entre a Europa e os Estados Unidos). A Ucrânia faz parte de tudo isso.

Em vez de abrir o caminho da Rússia à grandeza, invadir a Ucrânia garantirá a infâmia de Putin, deixando seu país diplomaticamente isolado, economicamente aleijado e estrategicamente vulnerável diante de uma aliança ocidental mais forte e mais unida.

Putin já colocou isso em ação, anunciando na segunda-feira sua decisão de reconhecer os dois enclaves separatistas na Ucrânia e enviar tropas russas para lá como "força de paz". Agora ele exigiu que a Ucrânia reconheça o direito da Rússia de anexar a Crimeia e que abra mão de suas armas avançadas.

Suas ações desencadearam sanções maciças, com outras ainda por vir se ele lançar um ataque em grande escala e tentar tomar o país inteiro. Essas sanções vão devastar não apenas a economia de seu país, mas também seu círculo estreito de aliados corruptos, que, por sua vez, poderão contestar sua liderança. Uma guerra que com certeza será sangrenta e catastrófica vai drenar os recursos russos e custar vidas russas –e, ao mesmo tempo, criar um incentivo urgente para a Europa reduzir sua dependência perigosa da energia russa. (Isso já começou com a decisão da Alemanha de suspender a certificação do gasoduto Nord Stream 2.)

Tal ato de agressão quase certamente levará a Otan a reforçar significativamente seu flanco oriental e avaliar a possibilidade de estacionar forças permanentemente nos estados bálticos, Polônia e Romênia. (O presidente Biden anunciou na terça-feira o envio de mais tropas para os países bálticos.) E geraria uma resistência armada ucraniana acirrada, com forte apoio do Ocidente. Um esforço bipartidário já está em curso para preparar uma resposta legislativa que inclua um aumento do envio de armas à Ucrânia. Não será uma reprise da anexação russa da Crimeia em 2014; será um cenário que remeterá à malfadada ocupação soviética do Afeganistão na década de 1980.

Biden e outros líderes ocidentais já deixaram isso claro em rodada após rodada de diplomacia furiosa. Mas, mesmo que o Ocidente consiga de alguma maneira impedir Putin de lançar uma guerra total, algo que está longe de garantido neste momento, é importante recordar que a competição predileta de Putin não é o xadrez, como alguns supõem, mas o judô. Podemos prever que ele vai continuar a procurar uma oportunidade para aumentar sua influência e atacar no futuro. Caberá aos Estados Unidos e seus aliados lhe negar essa oportunidade, mantendo uma resistência diplomática forte e aumentando o apoio econômico e militar à Ucrânia.

Pelo que conheço de Putin, creio que ele jamais vai admitir que cometeu um erro, mas ele já mostrou que é capaz de ser paciente e pragmático. E com certeza tem consciência de que o enfrentamento atual o deixou ainda mais dependente da China; ele sabe que a Rússia não pode prosperar sem alguns laços com o Ocidente. "Claro que gosto de comida chinesa. É divertido comer com pauzinhos", ele me disse em nosso primeiro encontro. "Mas isto daqui é mera trivialidade. Não é nossa mentalidade, que é europeia. A Rússia precisa ser parte firme do Ocidente."

Putin certamente sabe que uma segunda Guerra Fria não necessariamente teria um final positivo para a Rússia, mesmo com as armas nucleares que ela possui. Há aliados fortes dos EUA em quase todos os continentes. Enquanto isso, os amigos de Putin incluem gente como Bashar Assad, Aleksandr Lukachenko e Kim Jong-un.

Se Putin se sente encurralado, o único culpado disso é ele próprio. Como Biden já destacou, os Estados Unidos não têm desejo algum de desestabilizar a Rússia ou privá-la de suas aspirações legítimas. É por isso que a administração americana e seus aliados se ofereceram para manter diálogo com Moscou sobre uma gama ilimitada de questões de segurança. Mas a América precisa exigir que a Rússia aja em conformidade com os padrões internacionais aplicáveis a todos os países.

Putin e seu colega chinês, Xi Jinping, gostam de afirmar que hoje vivemos em um mundo multipolar. Embora isso seja evidente, não quer dizer que as grandes potências tenham o direito de dividir o globo em esferas de influência, como fizeram os impérios coloniais séculos atrás.

A Ucrânia tem direito à sua soberania, não importa quem sejam seus vizinhos. Na era moderna, os grandes países aceitam isso, e Putin também precisa aceitar. Essa é a mensagem que fundamenta os esforços diplomáticos ocidentais recentes. Ela define a diferença entre um mundo regido pelo estado de direito e um mundo que não obedece a regra alguma.

Tradução de Clara Allain  

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.