Refugiados da Ucrânia contam o que passaram para escapar da guerra

Seis entrevistados relatam jornada de desespero, frio, horas de caminhada e de espera até o outro lado da fronteira

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Flávia Mantovani Larissa Figueiredo
São Paulo e Budapeste

A Europa preparou uma recepção calorosa para os refugiados ucranianos, com vários países oferecendo centros de acolhida, registro facilitado e transporte gratuito para os que cruzam as fronteiras fugindo da guerra.

O problema é chegar até lá. Com cidades e estradas bloqueadas por tropas russas, bombardeios aéreos e combates terrestres em algumas regiões, deslocar-se pela Ucrânia é uma jornada arriscada.

Austin B. e sua família na estação de trem em Budapeste
Austin B. e sua família, recém-chegados da Ucrânia à estação de trem em Budapeste - Otávio Almeida/Folhapress

É, além disso, uma tarefa de alta complexidade logística. É preciso enfrentar longas filas para conseguir combustível, os supermercados estão desabastecidos, as estações de trem estão abarrotadas e faltam táxis e ônibus para tanta gente querendo sair.

Nas fronteiras, os congestionamentos de quilômetros e a aglomeração de pedestres levam a uma espera de horas e até dias sob o frio intenso.

A Folha reuniu seis relatos de pessoas de várias nacionalidades que passaram por tudo isso e agora conseguem respirar aliviadas do outro lado.

‘Doeu ver meus filhos sofrendo por algo que não entendiam’

Austin B., 50, nigeriano-ucraniano

Nascido na Nigéria, Austin foi para a Ucrânia aos 23 anos estudar economia na região do Donbass, agora ocupada pela Rússia. Acabou ficando, casou-se com uma ucraniana e hoje o casal vive com os quatro filhos em Kharkiv, cidade que está sob forte ofensiva russa. Foi entrevistado ao chegar à estação de trem de Budapeste.

"Temos vivido dias realmente muito difíceis, especialmente por sermos uma família grande, com quatro crianças. Para elas, foi uma viagem muito estressante. Não podíamos descansar, não havia água nem lugar para dormir.

Foi tudo muito difícil para nós, inclusive para sair da nossa casa. Passamos dois dias tentando conseguir um táxi para nos levar, com nossos quatro filhos e as malas, até a estação de trem.

Não podíamos prever o que aconteceria no minuto seguinte. A qualquer momento nós poderíamos ser as próximas vítimas da guerra. Minhas crianças choravam o dia inteiro. Eu estava completamente desesperançado e com o coração partido de ver meus filhos naquele estado, sofrendo por algo que eles nem sequer conseguiam entender.

Apesar de tudo, considero que eu e minha família tivemos muita sorte. Pessoas estavam sendo mortas nas ruas, atingidas por bombas. A situação na Ucrânia é mais séria do que se vê no noticiário. Na mídia, não se pode mostrar todas as explosões, todos os sons. Nós, que vivemos tudo isso, sabemos que a situação é mais grave do que se pode imaginar.

O projeto desta guerra é uma destruição completa da Ucrânia. Vários edifícios estão sendo bombardeados, escolas, universidades, civis sendo mortos. Eu realmente espero que as outras nações europeias e os EUA possam fazer algo a este respeito.

Agradeço a possibilidade de termos conseguido deixar nossa casa e entrado naquele trem. Estou muito feliz de podermos estar aqui hoje e que, mesmo dormindo no chão de uma estação de trem, minhas crianças se sintam livres para voltar a brincar."

‘Paguei US$ 1.000 numa passagem que custa US$ 50’

​Tetiana Sukhoparova, 52, ucraniana

Moradora de uma cidade no leste ucraniano, Tetiana foi resgatada com a ajuda da filha, Alesya, que mora nos EUA, e do genro brasileiro, o influenciador digital Anderson Dias. Anderson conseguiu um avião emprestado para buscá-la na Polônia, mas ela ainda teria que chegar até lá. Após um apelo de Anderson nas redes sociais, o jogador de futebol brasileiro Lucas Rangel se dispôs a dar carona para Tetiana. Quem conta a história é Alesya.

"As tropas não chegaram na nossa cidade até agora, mas tem sirenes de bomba, as pessoas estão escondidas nos porões e bunkers. Mas isso pode mudar a qualquer momento.

Minha mãe não queria sair, mas eu pedi a ela que por favor fosse. Encontramos nas redes sociais um jogador de futebol brasileiro que iria dirigir até a fronteira com a Polônia e se dispôs a buscá-la. Eu liguei para ela no meio da noite e disse: ‘Desce, tem alguém esperando você’. Ela teve que arrumar uma mala em 5 minutos.

O trajeto normalmente leva 14 horas, mas eles dirigiram por quase 24 horas. Nessa época ainda estava seguro, não estavam atirando, a guerra tinha acabado de começar.

Mas na fronteira, a fila estava tão grande que eles tiveram que abandonar o carro e andar 25 quilômetros, e ela ficou com os pés ensanguentados. Caminharam por cinco horas, e quando chegaram tinha milhares de pessoas lá, sem nenhum controle, nenhuma fila, todo mundo em pânico, tentando atravessar.

A temperatura era -6ºC e não tinha lugar para se abrigar. Minha mãe me disse que estava com muito frio e eu não sabia como ajudá-la, porque ela não podia voltar para o carro, que estava a horas de distância. Eu fiquei desesperada, pensei que ia perder minha mãe, que ela teria hipotermia, e que seria culpa minha, porque eu que a convenci a ir para a fronteira.

Falei para ela tentar entrar em algum ônibus, oferecer qualquer dinheiro. Eles perguntaram para todo mundo, mas todos respondiam ‘não, não, não’. Consegui o número de alguém, dei para ela e ela acabou conseguindo subir em um ônibus. Pagou US$ 1.000 por um bilhete que normalmente custa US$ 50. Não tinha assento no ônibus, ela ficou no chão por várias horas.

Quando ela atravessou, eu fiquei tão feliz, tão aliviada. Sabia que agora ela estava segura."

​‘Brasileira se tornou minha boa samaritana’

Don-Caleb Akonjom, 22, nigeriano

O modelo e estudante saiu de Kiev com a namorada ucraniana. Quando estavam quase desistindo de atravessar a fronteira, uma brasileira desconhecida os viu e deu uma carona até a Hungria.

"Depois que começaram os ataques, passamos dois dias sem saber o que fazer, até que decidimos ir embora. Mas se locomover era difícil mesmo dentro de Kiev. Tinha muito tráfego, as pessoas lutavam e se empurravam para entrar nos metrôs e trens.

Conseguimos ir até Lviv e, de lá, um motorista nos levou até a fronteira com a Polônia. Pagamos US$ 150 para percorrer um trecho curto. Quando chegamos na fila de carros, ele nos deixou e precisamos andar por 35 quilômetros. Estava -3ºC, tivemos que parar para fazer fogueiras para nos aquecer, foi surreal.

No caminho encontrei um amigo voltando do posto de controle, sem esperança. Ele me disse que esperou dois dias na fila e que havia gente esperando há mais tempo. Decidimos tentar mesmo assim.

Chegando lá, minha namorada teria que ficar na fila dos ucranianos e eu, na dos estrangeiros. Ela decidiu ficar junto comigo, mas essa fila não andava.

Ela ficou conversando com um guarda e ele avisou, em voz baixa, que não conseguiríamos atravessar porque no dia anterior algumas pessoas tinham tentado forçar a entrada e provavelmente nos mandariam voltar por alguma razão estúpida, como estar com mais cigarros do que o permitido.

Decidimos sair de lá e caminhar de volta, para ver aonde o vento nos levaria. Aí encontramos Clara, uma brasileira que entrou na Ucrânia para resgatar algumas pessoas, mas não as estava encontrando. Ela nos deu uma carona, até que achamos três brasileiros, que se juntaram a nós.

Clara dirigiu com a gente ao longo do país, para acharmos uma forma de sair. Acabamos entrando pela Hungria, onde havia menos tráfego e esperamos ‘apenas’ 16 horas. Eu a chamo de ‘boa samaritana’ porque ela tomou conta da gente até o fim. Já a considero uma amiga."

'Em um momento pensei que nunca conseguiria escapar’

Krishna Madhukumar, 22, indiana

A estudante de medicina vivia em um hostel em Kharkiv, "uma das cidades mais perigosas para se estar agora", como definiu ao ser entrevistada na estação de trem de Budapeste. Após cinco dias vivendo no subsolo, ela e outras estudantes decidiram tentar atravessar o país em uma longa jornada de trem rumo à fronteira.

A indiana Krishna Madhukumar, 22, estudante de medicina e refugiada da guerra na Ucrânia
A indiana Krishna Madhukumar, 22, estudante de medicina e refugiada da guerra na Ucrânia - Otávio Almeida/Folhapress

"Desde que o primeiro ataque a bombas atingiu Kharkiv, no dia 24, eu e as outras estudantes, todas mulheres, fomos para o bunker do hostel onde morávamos. Não podíamos sair nunca às ruas, pois ouvíamos a todo instante os avisos de bombardeio e mísseis passando pelos ares.

Dia após dia ficava cada vez mais complicado viver naquelas condições, com pouco acesso aos banheiros e passando muito tempo no escuro. Foi uma experiência muito difícil para todas nós.

Depois de cinco dias, decidimos sair dali por conta própria. Nos juntamos e resolvemos pegar um trem até Lviv, na fronteira com a Polônia. Todo mundo queria sair da cidade, estava bem complicado nas estações. Estavam dando prioridade às pessoas ucranianas e retiravam os estudantes [internacionais] de dentro dos trens. Tivemos que pagar U$S 200 para podermos embarcar.

Foi uma viagem muito arriscada. Passamos pelos principais lugares que estavam sendo atacados, como Kiev. Felizmente, conseguimos chegar bem em Lviv, onde pegamos outro trem para chegar aqui em Budapeste, depois de quase quatro dias viajando.

Posso contar tudo isso agora com alívio, mas nossa experiência foi potencialmente mortal e difícil. Os sentimentos que tivemos são indescritíveis. Em algum momento pensamos que tudo estava acabado para nós e que nunca conseguiríamos escapar dali. Parecia mesmo o fim. Felizmente, nós conseguimos. No entanto, ainda há muitos estudantes presos lá sem saber o que fazer.

Agora estamos à espera de que a embaixada indiana na Hungria nos receba, onde podemos conseguir alojamento. Também sabemos que teremos voos gratuitos para que retornemos à Índia. Estamos esperando ansiosamente por isso, para podermos voltar para a casa e finalmente ver nossos familiares."

‘Pelo menos tenho um país que está me esperando’

Joselin Nayeli, 19, equatoriana

A jovem vivia em uma residência estudantil na cidade de Ivano-Frankivsk e saiu de lá com outros sete equatorianos. A primeira tentativa deu errado e eles tiveram que mudar para um plano B.

"A situação em Ivano-Frankivsk não estava tão perigosa, mas tinha filas nos caixas eletrônicos, os alimentos iam desaparecendo pouco a pouco.

Foi muito estressante encontrar opções para sair. Eu estava no fim do mês, com pouco dinheiro, foi difícil achar alguém que nos levasse pelo que podíamos pagar. Muita gente estava disposta a nos ajudar, mas do outro lado das fronteiras. O problema era chegar lá.

Por pressão e por estresse, não traçamos um bom plano. Em vez de sair pelos países mais próximos, tentamos passar pela Polônia.

Fomos de van, mas tivemos que caminhar 25 quilômetros até a fronteira. Saímos às 6h e chegamos 13h. O clima não era nada favorável, começou a nevar.

Chegando lá, ficamos procurando a fila, mas só víamos gente amontoada. Depois de um tempo, fecharam as portas e algumas pessoas começaram a pular e a protestar. Saímos um pouco, voltamos, mas a fila não se mexia, o frio era demais e já eram 3h.

Estudantes que chegaram da Ucrânia apresentam seus passaportes na estação de trens de Budapeste
Estudantes que chegaram da Ucrânia apresentam seus passaportes na estação de trens de Budapeste - Otávio Almeida/Folhapress

Caminhamos meia hora até um abrigo e no dia seguinte decidimos voltar para casa. Estávamos cansados, precisávamos comer e dormir bem. Desta vez, iríamos tomar decisões com calma.

Uma professora ucraniana nos ajudou a conseguir dois táxis até a fronteira com a Eslováquia. Demoramos sete horas para conseguir passar, mas lá estava melhor do que na Polônia, ao menos deixavam passar estrangeiros, não só ucranianos.

Por enquanto, nos deram duas semanas de férias da universidade. Vou voltar para o Equador, tomara que essa situação termine rápido.

Pelo menos eu tenho um país que está me esperando. Mas e as pessoas ucranianas? O que elas vão fazer? Saber que as pessoas estão fugindo e que não tem ninguém esperando-as nos outros países me corta o coração."

‘Só digeri tudo aquilo ao atravessar a fronteira’

Walther Lang, 47, brasileiro

Depois de passar uma noite em uma garagem em Kiev, ele e a esposa ucraniana saíram da capital em um comboio de dez carros com amigos dela, rumo a uma região montanhosa. Ela decidiu ficar, e Walther voltou para o Brasil via Polônia.

"Saímos do abrigo em um comboio basicamente de mulheres, pois os homens ucranianos não podem sair de Kiev. Só parávamos para abastecer, e mesmo assim foram mais de 25 horas de viagem porque tinha muitos bloqueios, postos de controle em toda cidade e a gente foi pegando só vias secundárias.

A gente foi em um carro com a placa da Belarus e sempre éramos parados. Os policiais já chegam com a metralhadora à vista, faziam várias perguntas com pegadinhas.

Chegamos a uma estação de esqui, que estava funcionando normalmente. Tinha hotel, luz, serviço completo. Fizemos uma reunião para decidir o que fazer da vida, já que não existe mais trabalho, negócio, nada.

Minha esposa resolveu ficar com um grupo de amigas. Elas estão em um lugar protegido, onde não tem nada estratégico. Para mim, um homem com um passaporte que não é tão comum, iria ficar cada vez mais complicada a situação. Decidi dar um tempo, voltar para o Brasil e ficar monitorando a situação.

Comprei uma passagem de trem até a Polônia, mas quando paramos em Lviv, descobri que não existe mais o sistema ferroviário convencional. São só trens humanitários, e eles levam principalmente mulheres e crianças.

Minha esposa descobriu que sairia em 40 minutos um ônibus humanitário, enviado por um grupo de artistas poloneses, em direção à fronteira. Vi um irlandês com a mulher chinesa e uma criança e os chamei para irem junto. Saímos correndo.

Enquanto esperávamos o ônibus sair, ficamos dentro de um teatro. Parecia a Disneylândia: era aquecido, tinha comida, chá quente, almofada. Alguém começou a tocar piano, todo mundo cantou músicas em ucraniano.

Como o ônibus tinha placas dizendo que era uma ação humanitária, chegou bem rápido. Tinha um rapaz russo com a gente e na fronteira tiraram ele do ônibus, não sei que fim levou.

Na saída da Ucrânia, o ônibus quebrou e só voltou a andar após duas horas. Quando finalmente atravessamos, eu comecei a digerir tudo aquilo. Chorei bastante, não conseguia me controlar. Quando você está lá, você só está pensando na próxima ação: ‘tenho que carregar o celular, não posso perder o trem…"

Fiquei na hospedaria de um brasileiro, que parecia um paraíso depois de dormir em trem, carro. Lá conheci uma mulher com a filha e a mãe dela, que passaram dias perambulando pela Ucrânia, fugindo dos ataques, correndo no meio da neve, com malas pesadas. Era uma menina de 12 anos e uma senhora de 60 e poucos anos. Praticamente só há refugiadas mulheres."

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