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Jovens em Mianmar trocam vida na cidade por insurgência na selva 1 ano após golpe

Milhares deixaram faculdade e videogame para pegar em armas contra junta militar

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The New York Times

Em morros na selva a cerca de 1,5 km das linhas de frente no leste de Mianmar, um ex-coordenador de banquetes num hotel deslizou o indicador sobre o gatilho de um fuzil. Um dentista lembrou que removeu larvas do ferimento infeccionado de um jovem combatente. Uma gerente de marketing descreveu os drones comerciais adaptados que pilota para evitar o inimigo.

Mais de um ano depois que os militares de Mianmar tomaram o controle total em um golpe —capturando a liderança eleita do país, matando mais de 1.700 civis e prendendo pelo menos outros 13 mil—, o país está em guerra, com alguns combatentes improváveis no conflito.

De um lado, há uma junta militar que, exceto por um breve intervalo de regime semidemocrático, governa com força brutal há meio século. Do outro estão dezenas de milhares de jovens moradores de cidades que pegaram em armas, trocando cursos na faculdade, videogames e unhas pintadas pela vida e morte na selva.

Soldados do Exército de Libertação Nacional de Taaung , um grupo armado étnico de Palaung, reunidos um dia antes de marcar o 59º aniversário do Dia da Resistência Nacional de Taaung, no município de Tangyan, em Mianmar
Soldados do Exército de Libertação Nacional de Taaung , um grupo armado étnico de Palaung, reunidos um dia antes de marcar o 59º aniversário do Dia da Resistência Nacional de Taaung, no município de Tangyan, em Mianmar - AFP - 11.jan.22

Jornalistas do New York Times visitaram recentemente um acampamento na floresta tropical no leste de Mianmar, onde cerca de 3.000 membros de uma milícia recém-criada subsistem em abrigos de bambu ou de lona e participam de batalhas quase todos os dias.

Seus números são uma fração de um dos maiores exércitos do Sudeste Asiático, mas esses guerreiros da geração Z desequilibraram uma força militar que há muito fez dos crimes de guerra seu cartão de visita. E o conflito está crescendo, enquanto a atenção do mundo passou para outros absurdos morais como a invasão da Ucrânia pela Rússia.

Hoje, longe de consolidar seu poder no país, o Exército de Mianmar, conhecido como Tatmadaw, é obrigado a lutar em dezenas de frentes, das fronteiras com Índia, China e Tailândia às aldeias e cidades no interior do país. Há escaramuças quase todos os dias –e mortes também.

Uma parteira de uma cidade no sul do país, que não quis que seu nome fosse citado para proteger os parentes, disse que está lutando porque não aceita o golpe militar e o fim da democracria.

Conhecida pelo nome de guerra de Branca de Neve, ela chegou em maio a uma área controlada por um grupo étnico armado que luta por autonomia há décadas. Desde então, os rebeldes étnicos e desertores do Exército lhe ensinaram a carregar um fuzil, montar uma granada caseira e realizar triagem de feridos no campo de batalha.

Enfrentando ataques de milícias civis que lutam ao lado de grupos étnicos insurgentes, o Tatmadaw organizou uma contraofensiva, lançando ataques aéreos, incendiando aldeias e aterrorizando os que se opõem à sua tomada de poder.

"Tudo o que o Tatmadaw sabe fazer é matar", disse Ko Thant, que era capitão antes de desertar da 77ª Divisão de Infantaria do Exército no ano passado. Desde então, ele treinou centenas de civis em táticas de batalha. "Nós sofríamos lavagem cerebral o tempo todo, mas alguns de nós despertamos."

A oposição ao golpe militar em fevereiro de 2021 começou com a manifestação de milhões de pessoas nas ruas das cidades de Mianmar. De sandálias, salto alto ou descalços, no caso dos monges budistas, o país se uniu pacificamente pelo retorno de sua liderança eleita. Dentro de semanas, o Tatmadaw retornou a seu antigo manual. Atiradores de elite atingiram os manifestantes com tiros mortais na cabeça.

Alguns jovens que tinham se tornado adultos durante a década de reformas em Mianmar viram pouca utilidade na mensagem de dissidência não violenta que vinha dos ativistas democráticos veteranos. Eles quiseram reagir lutando.

"Os protestos pacíficos não funcionam quando o inimigo quer nos matar", disse Naw Htee, assistente social que se tornou sargento da milícia. "Temos que nos defender."

Com pequenos prendedores no cabelo, ela mostrou com gestos os fragmentos de morteiro e cápsulas de artilharia, detritos de guerra que choveram sobre o acampamento na selva onde ela mora. Um rapaz se agachou perto dela, com uma grande cicatriz no ombro de um tiroteio no mês passado.

Hoje há centenas de milícias civis por toda Mianmar, organizadas frouxamente no que se chamam Forças Populares de Defesa, ou FPD. Cada milícia promete fidelidade a um governo civil na sombra, o Governo de União Nacional, que se formou depois do golpe, e alguns batalhões são liderados por legisladores depostos.

Em um relatório de direitos humanos divulgado em 15 de março, a ONU acusou a junta militar de praticar crimes de guerra em massa contra seu próprio povo depois do golpe.

Mas além de algumas sanções financeiras e palavras de condenação, a comunidade global pouco fez para punir a junta de Mianmar. O Governo de União Nacional não obteve o reconhecimento de nenhum país, embora suas fileiras estejam cheias de políticos eleitos. Com pouca esperança de ajuda externa, a autoridade paralela se aliou a grupos rebeldes étnicos que controlam territórios nas regiões de fronteira de Mianmar. Juntos, eles formaram uma ferrovia subterrânea para levar jovens à segurança –e treiná-los em ações de guerra básicas.

O governo paralelo afirma que as Forças Populares de Defesa, lutando ao lado de combatentes mais experientes das milícias étnicas, mataram cerca de 9.000 soldados do Tatmadaw de junho de 2021 a fevereiro de 2022 (cerca de 300 membros das milícias morreram em combate, segundo o governo paralelo). Um porta-voz dos militares de Mianmar disse que o número real de mortos é menor, e que os números da autoridade paralela não podem ser confirmados. Mas fontes militares reconheceram que o Tatmadaw estava preocupado com o aumento de baixas.

Os feridos da resistência são tratados em uma clínica na selva com mesas de cirurgia de bambu e um dispensário feito de tiras de bambu. Ko Mon Gyi, um miliciano, descansava sobre uma plataforma de madeira, com a perna enfaixada por causa de um tiro que levou lutando no mês passado. Outros oito combatentes foram feridos naquele dia.

"Assim que eu me recuperar, vou lutar de novo", disse ele. "É meu dever."

O diretor da clínica é um médico que serviu no exército durante quase 12 anos. Como médico de campo de batalha, o doutor Drid, como ele chama a si mesmo, tratou soldados feridos em lutas contra alguns dos rebeldes étnicos que hoje abrigam seu batalhão das Forças Populares de Defesa.

"Eu acredito nos direitos humanos e na democracia", disse Drid. "O Tatmadaw deveria lutar por essas coisas, proteger essas coisas."

A voz do antigo médico do exército tremeu e suas mãos também quando ele descreveu o dia, no ano passado, em que saiu de casa e desertou. Ele não contou à sua família para onde ia, por medo de que os militares retaliassem; alguns parentes de soldados que desertaram foram presos e torturados. Pelo que seu filho sabe, ele pode ter sido morto em combate, disse.

"Eles são covardes", disse ele sobre as Forças Armadas, em que ele entrou aos 15 anos. "São robôs que não conseguem pensar."

Para membros da geração jovem de Mianmar, o golpe foi uma volta a um passado quase inimaginável, sem Facebook e sem investimentos. Sob um regime militar anterior, Mianmar foi um dos países mais isolados do mundo. Desde o golpe, a nova junta militar, liderada pelo general Min Aung Hlaing, proibiu as redes sociais, destruiu a economia e mais uma vez colocou o país inteiro numa casamata.

"Os generais roubaram nosso futuro", disse Ko Arkar, que até o golpe trabalhava como chef em um hotel em Rangoon, a maior cidade do país.

Ele costumava passar os dias clarificando consomê de carne e grelhando bifes no ponto perfeito. Hoje patrulha as linhas de frente com um engenheiro de redes, um trabalhador de indústria têxtil e um medalhista de vela nos Jogos do Sudeste Asiático.

"Sabemos como o Tatmadaw é ruim porque eles estão matando nossa gente e violentando nossas mulheres", afirmou Saw Bu Paw, comandante de batalhão do Exército Karen de Libertação Nacional, um das dezenas de grupos étnicos rebeldes. "Com o golpe, todo mundo no país sabe a natureza maligna deles."

Investigadores da ONU disseram que o tratamento dado pelos militares a algumas minorias étnicas do país exibe as marcas do genocídio. Este mês, os Estados Unidos também designaram como genocídio a campanha do Tatmadaw contra a minoria muçulmana rohingya.

Embora não haja dados sólidos, o número de deserções do exército parece estar aumentando. Mesmo antes do golpe, os soldados estavam sobrecarregados e mal pagos.

"Quem quer ser soldado hoje?", perguntou Wai, outro médico que desertou do exército e hoje atende as Forças Populares de Defesa na floresta. "É uma profissão vergonhosa."

A guerra é feia, e os rebeldes foram acusados de abusos. Nas cidades, membros das FPD realizaram uma campanha de assassinatos e bombardeios que levantaram questões sobre disputas pessoais serem resolvidas sob o disfarce da luta pela democracia.

Mas a resistência continua crescendo, atraindo recrutas improváveis.

Até o ano passado, John Henry Newman, como é conhecido por seu nome de batismo, estudava para ser padre num seminário católico em Rangoon. Seus dedos, que antes acariciavam contas de rosário, apertaram um gatilho de rifle diversas vezes. Na luta em dezembro no leste de Mianmar, o inimigo estava tão perto que ele disparou, mas não sabe se as balas atingiram algum alvo, segundo disse.

"Matar é pecado", afirmou ele. "Mas não quando é uma guerra do bem."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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