Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Brasileiras relatam experiência de hospedar em casa refugiados ucranianos na Polônia

Casais cedem o próprio quarto para acolher pessoas que fogem da guerra

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São Paulo

"Quarto para duas pessoas por uma semana". "Quarto para três pessoas por três dias". Segurando placas com frases como essas escritas em ucraniano, Daiane Anzolin, 38, foi à estação de trem da cidade de Cracóvia, onde mora, oferecer um teto para refugiados que não têm onde dormir.​

A brasileira, que mora no país há dois anos com o noivo polonês, já hospedou em seu apartamento de um quarto sete pessoas que escaparam da guerra —e mais duas que só tomaram banho e seguiram viagem, sem pernoitar. Também direcionou ucranianos para a casa de amigos que se dispuseram a recebê-los.

Inicialmente, Daiane incluiu seu nome em um cadastro de voluntários criado pelo governo da Polônia para a hospedagem de refugiados. Mas a demanda foi tanta que o sistema entrou em colapso, e ela decidiu oferecer abrigo presencialmente, com os cartazes na estação.

A brasileira Daiane Anzolin (de amarelo) com o noivo e ucranianos que recebeu em sua casa
A brasileira Daiane Anzolin (de amarelo) com o noivo e alguns ucranianos que recebeu em sua casa - Arquivo pessoal

"As pessoas vêm na mesma hora, pedem que a gente ajude. Tem muita gente dormindo no chão, a fila de espera para fazer o cadastro [no centro de acolhimento do governo] era de cinco horas", conta.

Principal porta de saída para ucranianos que escapam da guerra, a Polônia tem oferecido uma recepção calorosa, com pontos de acolhida, transporte e atendimento médico gratuitos e facilidades na regularização. Mas o fluxo de 2 milhões de pessoas em pouco mais de um mês tem sido um desafio.

Os primeiros refugiados que Daiane recebeu eram na verdade do Turcomenistão —e o casal trazia uma surpresa na mochila. "Tinha um gato enorme escondido dentro de uma sacola. Ela fez o gesto de por favor, que eu permitisse que ele ficasse", conta. "Eles chegaram muito cansados, estavam viajando havia quatro dias."

De lá, o casal seguiu para a Turquia, onde tinha amigos à sua espera. Outras famílias ficaram temporariamente na casa de Daiane, até chegarem as hóspedes atuais, uma mãe e sua filha adulta, que devem ficar por um período prolongado —a brasileira diz que deixará a chave de casa com elas durante um período em que ficará fora, a trabalho.

Os donos da casa foram dormir no sofá da sala para ceder seu quarto. "São pessoas que deixaram pai, filho, irmão lá, perderam parentes, viajaram por dias. Fazemos o possível para deixá-las mais à vontade."

A comunicação é improvisada por meio de aplicativos de tradução, junto com um pouco de inglês e até de polonês —que tem algumas palavras semelhantes ao ucraniano. As duas hóspedes estão matriculadas em aulas de polonês, e uma delas conseguiu emprego em um hotel.

"A gente teve uma conexão grande. No começo foi difícil para todo mundo, elas ficaram constrangidas. Quando perceberam que estavam em um lugar seguro, choraram bastante, eu chorei também."

A brasileira observa que é uma grande responsabilidade acolher famílias que passaram por um trauma como o da guerra. "Não podemos romantizar a situação. São pessoas que vão chorar, ter ataque de pânico, se sentir culpadas por terem abandonado o país. Não vão estar sorrindo e dizendo ‘que bom que você me recebeu’", diz. "Não é um filme e não somos heróis."

Ucranianos que já viviam na Polônia antes do conflito também vêm se mobilizando para conseguir hospedagem para amigos e familiares que chegam agora. Uma delas pediu à diretora de marketing Letícia de Castro Lemos, 36, sua colega de mestrado, que recebesse uma amiga de infância e sua filha de 9 anos vindas de Kharkiv, cidade no leste ucraniano fortemente atingida pelos bombardeios russos.

"Elas chegaram com uma mochila cada uma, a criança assustada. Levou um tempo até conseguirem falar com a gente", conta a brasileira, que mora na Polônia há cinco anos com o marido. "Tentamos respeitar o espaço delas. Não perguntamos muito, busco não dar mais informação do que podem absorver. Oferecemos conexão, mas sem impor nada."

Passados uns dias da chegada, a menina já está na escola e mais relaxada. "Ela dá muitas gargalhadas com os nossos gatos, preenche a casa com uma energia boa. Fazemos as refeições juntos, assistimos [à série] 'Friends' em inglês com legenda em russo, brincamos", conta. "Temos muita alegria em recebê-las, mas ao mesmo tempo é doído saber que elas precisaram fugir, ver pessoas que não têm rede de apoio e precisam dormir na estação."

Segundo Letícia, cerca de 50 brasileiras que moram em Cracóvia estão ajudando ativamente os refugiados. Mas com o tempo as opções de hospedagem para os que chegam vão escasseando.

"As cidades aqui não são muito grandes. Cracóvia tinha 800 mil habitantes antes da guerra, Varsóvia é um pouco maior. Está tudo lotado. E nas cidades menores as pessoas não têm a mente tão aberta."

Por outro lado, parte dos ucranianos já se dirigiu a outros países europeus, e com o tempo o acolhimento ficou mais organizado, segundo a analista de compliance Michelle Campos, 35. "A cidade está cheia, mas não está aquele desespero do começo. Você não vê refugiados dormindo na rua, o atendimento ficou mais estruturado, tem ônibus de graça saindo para a Itália e para outros países", diz.

Michelle, que vive com o marido há cinco anos em Cracóvia, hospedou três famílias em menos de um mês. Uma delas, uma mulher com criança, conseguiu alugar uma casa com outras refugiadas. Em seguida vieram uma jovem grávida e o marido, que ficaram até conseguir alugar um apartamento. "Eles se tornaram nossos amigos, vamos sair juntos amanhã", conta a brasileira.

A outra hóspede acabou de ir para a Alemanha. "No primeiro dia eles mal saíram do quarto. Eu entendo a desconfiança. Mas agora a gente se fala todo dia, disse a ela que se der errado eles podem voltar."

Para a produtora de conteúdo Amanda Reggio, 33, imigrantes como ela e outros brasileiros acabam tendo uma empatia especial pelos refugiados. "Somos privilegiados porque tivemos a oportunidade de escolher o destino, trazer as nossas coisas. Eles não tiveram nada disso."

Ela hospedou duas famílias: os primeiros –duas mulheres, uma criança e um cachorro– foram para Viena; as outras duas, uma dentista com a filha de 7 anos, viajaram para encontrar a irmã em Bucareste.

A brasileira Amanda Reggio (à dir.) com o marido e uma família ucraniana que recebeu em sua casa
A brasileira Amanda Reggio (à dir.) com o marido e uma família ucraniana que recebeu em sua casa em Cracóvia - Arquivo pessoal

Amanda e o marido, na Polônia desde 2019, cederam o próprio quarto no apartamento de 50 metros quadrados para as visitas. "Quando a guerra começou, foi um choque. A gente ficou numa bolha, pensando na própria dor, avaliando se era seguro permanecer aqui", lembra. "Mas quando vimos a condição em que os ucranianos estavam chegando, com só uma sacolinha com documentos e a roupa do corpo, começamos a olhar essa situação pela perspectiva do outro. O que a gente tem a oferecer não é muito, mas pode ser o que essas pessoas precisam em um momento como esse."

Katia (que não quis revelar o sobrenome), ucraniana hoje hospedada na casa da brasileira Daiane, tomou a iniciativa de enviar à reportagem um depoimento no qual diz que já se sente parte da família. "Aqui temos tudo o que precisamos", afirma.

"Durante nossa viagem, fomos acompanhados por grupos de voluntários que nos alimentavam, ofereciam chá e água e distribuíam doces para as crianças. O apoio que estamos tendo na Polônia é muito reconfortante e nos traz segurança, mesmo tendo tido que migrar abruptamente para um país estrangeiro, sem nenhum planejamento. Não encontramos palavras para expressar nossa gratidão."


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