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Guerra na Ucrânia Rússia

Butcha corre risco de ser só mais um capítulo da guerra narrativa na Ucrânia

Conflito implica crime por definição, e a história costuma ser escrita pelos vencedores

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São Paulo

Guerra implica crimes, por definição, e civis invariavelmente são as vítimas mais vulneráveis do processo. É assim desde o Peloponeso, passando pela tomada napoleônica da Europa, os massacres coloniais britânicos, a campanha genocida dos nazistas e a vingança soviética contra ela.

Claro, há leis da guerra. Mas poucas coisas são tão ignoradas quanto regulamentos no calor da batalha, que também embute o fator humano, treinamento e inclinação ideológica. O massacre de My Lai, em que americanos mataram centenas de civis desarmados em 1968 no Vietnã, é exemplar disso.

Cercado por militares, o presidente Zelenski visita as ruínas de Butcha, perto de Kiev
Cercado por militares, o presidente Zelenski visita as ruínas de Butcha, perto de Kiev - Ronaldo Schemidt - 4.abr.22/AFP

Pelas evidências até aqui, há poucas dúvidas de que o que ocorreu em Butcha foi um crime de guerra na asserção clássica: ataques deliberados a civis desarmados. Valas comuns são horrendas, mas não configuram provas necessariamente. Pessoas amarradas e baleadas na cabeça, sim.

O problema é diverso e embute a hipocrisia de que é irrelevante ao fim a natureza do que aconteceu na cidade nos arredores de Kiev. Mesmo assumindo a hipótese que soa fantasiosa do Kremlin, de que tudo não passou de uma armação para incriminar Moscou, o nó é a impossibilidade de uma apuração objetiva.

Sempre foi assim. Histórias de guerra são escritas por seus vencedores. Fossem os sérvios-bósnios indiscutivelmente os vitoriosos no sangrento embate dos anos 1990 na ex-Iugoslávia, Srebenica talvez não fosse vista hoje como monumento da perenidade do conceito de limpeza étnica.

Por óbvio, relembrar o passado não significa justificar o presente. Houve crimes em Butcha e região, perpetrados ao que tudo indica por russos. Mas não há investigação independente possível para estabelecer o que ocorreu, apenas os relatos de sobreviventes e a história que Kiev quiser contar. O mesmo vale para os vídeos, que parecem genuínos, de execuções sumárias de soldados russos rendidos —um crime de guerra também.

Como a Ucrânia é tão draconiana quanto a Rússia em sua censura ao trabalho de jornalistas na guerra, sendo objeto inclusive de protestos formais de profissionais do próprio país, dificilmente esse véu será levantado enquanto a névoa do conflito estiver no ar. Talvez nunca o seja.

Portanto, nada mais natural que Volodimir Zelenski suba a temperatura e grite que houve genocídio em Butcha. Assim, municia o Ocidente na cruzada até aqui infrutífera de punir Vladimir Putin pela agressão contra a Ucrânia com sanções econômicas. O fato de que os ucranianos estão longe da santidade em suas ações militares e manipulações narrativas não valida o oposto, mas ajuda a dar contexto.

Um ponto intrigante é a ideia de que os russos tenham deixado evidências tendo alguns dias para abandonar as posições, como haviam anunciado que fariam. Não se pode descontar a vontade de gerar terror sem se preocupar com consequências de uma Justiça internacional que só funciona para alguns.

Mariupol, quase esquecida como símbolo de uma campanha para ver Putin preso em Haia, está aí para mostrar tal disposição. Ironicamente, o russo, logo ele, tem enfrentado problemas na campanha por uma armadilha legalista doméstica. Ao não decretar guerra à Ucrânia, e sim uma "operação militar especial", o Kremlin ficou impedido de drenar à vontade os recursos humanos que uma mobilização nacional garante.

Foi uma jogada política, ao que tudo indica, baseada na suposição de que Putin previu uma guerra curta e vitoriosa. Aplicando conceitos táticos errados, colocando colunas blindadas contra infantaria leve bem armada com fatais mísseis antitanque e dispersando forças, sofreu os reveses conhecidos.

Na estimativa de diversos analistas, em termos de equipamento Moscou perdeu talvez 30 dos 125 batalhões táticos envolvidos na ação, o que não significa baixas humanas correspondentes (que seriam enormes 24% de 200 mil homens). Mas é um duro golpe.

Com os fardados que tem à mão e às vésperas de ver 134 mil conscritos irem para casa e serem trocados por jovens sem treinamento, na rotação bienal das suas forças, Moscou teve de se reagrupar. Deixou propagandear o uso de mercenários sírios, mas militarmente eles não têm como fazer grande diferença.

A retirada parcial do entorno de Kiev e a concentração anunciada de forças no leste, no Donbass, sugere também a vontade de consolidar o processo de partilha da Ucrânia. Mas pode indicar a ideia de uma guerra de meses, talvez anos, visando o objetivo de subjugar todo o país, sabe-se lá a qual custo humano.

Com a necessidade clara de Putin de ter de trazer algum tipo de vitória para casa, e o risco existencial que isso traz a Zelenski, Butcha poderá ao fim virar só um capítulo na lista das atrocidades dessa guerra.

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